Uma Rápida Entrevista com Dodi Leal – Por Douglas Ricci

A Teatra é uma profetização sobre aquilo que fica do teatro. É uma fabulação sobre aquilo que fica. É o pó do teatro, é um resto, um podre, é do submundo, do subterrâneo – Dodi Leal

Por Douglas Ricci
@blogaus

A paulistana Dodi Leal é uma multiartista que atua em várias frentes. Atriz, iluminadora, escritora, curadora, pesquisadora, professora e travesti. Possui uma vasta obra entre livros, artigos e produções teatrais. Conheci-a através de seus radicais artigos acadêmicos que abrem uma fresta poética fabular na aridez formal deste campo de atuação. É criadora dos conceitos de teatra e luzvesti, com os quais propõe uma reinvenção dos processos criativos teatrais por uma ótica operacional travesti. Tive a honra de acompanhar suas aulas na disciplina Fabulações Travestis Sobre o Fim oferecidas em abril deste ano no PPGAC da ECA/USP, onde pude vivenciar na prática a poética proposta pela artista pesquisadora. Aproveitando a proximidade, convidei-a para uma entrevista sobre seu trabalho, que ela gentilmente me concedeu em uma agradável tarde após a aula. 

A tua formação é bastante eclética, você tem uma graduação que é em ciências contábeis, depois você fez uma segunda graduação em artes cênicas, o seu mestrado é em controladoria na FEA na linha de pesquisa de educação e contabilidade e o doutorado em psicologia. Gostaria que você comentasse como se deu essa sua formação tão eclética

Dodi Leal – Primeiramente agradeço a oportunidade de estar com vocês, admiro muito o trabalho do Deus Ateu. Adorei a crítica (1) que vocês fizeram do espetáculo TRAVED: Palestra-Performance em Realidade Virtual onde atuo como performer e dramaturga, com direção e roteiro de Robson Catalunha.

(1) https://deusateucombr.wordpress.com/2022/05/30/em-carater-de-urgencia-poetica-traved-por-marcio-tito/

Bom, a minha trajetória eu tenho dito que ela é indisciplinar, porque ela passa mesmo por áreas diferentes que de alguma forma não dialogam uma com a outra, então gera um pouco esse espaço de trânsito,  mas também de traição. Traí o teatro com a contabilidade, a contabilidade trai a si mesma com a psicologia, a psicologia trai o teatro com a educação, enfim. Todas essas relações eu acabo também passando. 

Isso tudo é minha elaboração, minha fabulação sobre o meu percurso, mas isso se deu à força. Eu quis fazer uma trajetória diretamente nas artes, mas não foi possível pra mim, por conta da condição periférica principalmente. Morando ali na Zona Leste, em São Paulo, na periferia. Eu nasci no Ipiranga, com dois anos fui pra Cohab de Itaquera e depois fui pro Aricanduva.

Douglas Ricci – E você já fazia teatro na adolescência? Você já tinha tido contato com o teatro antes?

Dodi Leal – Eu fiz na escola. A gente participou de um projeto muito interessante, chamava Prêmio Cepacol Cultura e Esporte, promovido por aquele enxaguante bucal, sabe? Então, tinha várias modalidades. Eu tinha me inscrito no vôlei. Porque eu tinha essa interdição da minha própria família: teatro é coisa de viado e puta, você não vai fazer. Então eu me inscrevi no vôlei, eu tinha quatorze anos, era uma escola pública, no Tatuapé. Aí quando eu fui fazer a seleção pra participar do time de vôlei, desisti na hora, virei as costas e entrei na seleção do teatro, fiquei e passei. Só que eu não podia fazer, fiquei neste impasse, mas pensei: vou fazer, apesar da família, e fiz. E aí a gente ganhou o prêmio de melhor peça teatral. Foi o único prêmio que eu tinha ganhado em minha vida até o Prêmio Deus Ateu, você acredita?

Douglas Ricci – Que legal!

Dodi Leal – Foi muito importante, porque veja, foram dezessete anos sem prêmio nenhum. Eu ganhei o Prêmio Cepacol com quatorze anos, num contexto amador, e aí depois o prêmio Deus Ateus que foi de um trabalho, de um reconhecimento, fiquei muito feliz, porque foi muito tempo depois.

E esse prêmio, bom, a gente concorreu com Anglo Latino, Ítalo Brasileiro, Rio Branco e Pueri Domus que eram as escolas particulares mais conceituadas e elitizadas de São Paulo, e a gente da Escola Estadual Ascendino Reis era uma escola pública, juntamente com a ETEC Caetano de Campos, e ganhamos o prêmio de melhor espetáculo pelo trabalho A disputa, do autor Marivaux. Enfim. Isso me deixou à flor da pele, querendo fazer teatro pro resto da minha vida, o processo foi incrível, eu tinha quatorze anos. Aí fiz o 1500 – A Grande Viagem, no ano seguinte, e o Sexo, Drogas e Rock’n’roll, todas elas dirigidas pelo Edson Simões, sendo que A Disputa foi co-dirigida por Vilson Malaquias. O Edson tinha se formado no Macunaíma e era cantineiro da escola. 

Douglas Ricci – Ah, que história, como assim?

Dodi Leal – É ótima! O Edson acabou comprando a cantina da escola depois que ele passou a ser professor de teatro, pra ter uma oportunidade para a família. Então ele era professor de teatro e depois se tornou cantineiro também, meio que ao contrário.

E aí pronto. Quando eu fui fazer vestibular, era muito difícil e eu não consegui passar da primeira vez em artes cênicas. E ainda tinha essa pressão familiar, você não vai fazer uma faculdade de artes né, jamais. Então, fui fazer a contabilidade um pouco por isso né, pela pressão familiar.

Mas durante a contabilidade eu fazia técnico em teatro no Macunaíma. E aí eu comecei a hackear um pouco os espaços. Minha trajetória sempre foi assim, fazer uma coisa e ainda outra. Dar aula na Bahia e na USP ao mesmo tempo, e com uma entrevista no meio. Sempre foi assim

Douglas Ricci – Minha próxima pergunta é: O que é a teatra? É o fimturo do teatro?

Dodi Leal – Amo! Sim! próxima pergunta. (risos)

Douglas Ricci – Ah fala um pouco, discorra. (risos)

Dodi Leal – A Teatra é uma profetização sobre aquilo que fica do teatro. É uma fabulação sobre aquilo que fica. É o pó do teatro, é um resto, um podre, é do submundo, do subterrâneo. Então a teatra sempre esteve, sempre foram fabulações, sempre foram outras formas de existir  mas que não eram reconhecidas, e também o próprio tensionamento da linguagem. A gente tem feito experiências por exemplo, circo performativo, realidade virtual, possibilidades de musicalização do invisível, coisas que colocam em xeque a instituição teatro, porque ela não comporta essas rupturas, essas possibilidades outras de linguagem. Então a teatra é um xeque-mate. Uma xeca-mata no teatro. Porque essa é uma cartada. E aí? O que vai acontecer?

Inclusive a noção de TEATRA ensejou uma série de livros na Hucitec com mesmo nome, na qual sou diretora editorial e que tem publicado obras de pesquisas que rompem com o espectro normativo do teatro tanto no que se refere às linguagens artísticas como também aos processos de investigação sócio-estéticos. No próximo mês de outubro iremos lançar a série com os dois livros já publicados e mais quatro novos aqui em São Paulo (2).

(2) https://lojahucitec.com.br/produto/performatividade-transgenera/

Douglas Ricci – Gosto muito de saber como se dá o processo criativo dos artistas. Como são os seus? O que guia teu desejo a cada novo processo criativo?

Dodi Leal – Olha, o que tem me feito verticalizar essa relação do desejo no trabalho criativo tem sido investigar alguma coisa que está me angustiado. É uma angústia, que tenha a ver com alguma inquietação minha. Então, o acidente gerou o espetáculo TRAVED, as angústias de relações afetivas geraram o trabalho Cor-pó (que é um ensaio fotográfico e um futuro filme que já está gravado mas a edição está paralisada),  tenho receio de teorias que não dançam é a angústia com relação ao meu sentir-me deslocada dentro do contexto da instituição universidade, academia, produção de conhecimento, e também pela violência ambiental. Ser uma travesti ambiental, viver numa APA – Área de Proteção Ambiental, eu moro em Guaiú, mas até pouco tempo morava em Santo André na Bahia e cheguei a enfrentar algumas questões ligadas a Secretaria de Meio Ambiente, que já me convocou uma vez pra prestar esclarecimentos, num contexto de perseguição transfóbica.

Douglas Ricci – E isso está te atravessando muito no momento…

Dodi Leal – Total. Isso inspirou, dentre outras situações, o filme tenho receio de teorias que não dançam, que está investigando o gênero ambiental evidentemente, enfim, e outros trabalhos que estou desenvolvendo atualmente, acho que mais TRAVED Piauí, que vai ser o terceiro espetáculo da trilogia, onde vou desenvolver mais essa relação da travesti ambiental. E é isso. Não sei se te respondi.

Douglas Ricci – Respondeu sim. É isso. Há um modo travesti de abordagem artística e pedagógica?

Dodi Leal – Sim. Acho que tem muito a ver com as Travecametodologias. Eu estou aprendendo muito com a Isadora Ravena sobre as Travecametodologias. Eu questiono muito sobre as epistemologias das Travecametodologias. Essa é uma questão que ela ainda não conseguiu resolver. Pra mim me interessa. Não sei se é um jeito específico, mas o conjunto referencial epistemológico me interessa. O que estamos criando epistemologicamente? O jogo de palavras? O que é que tem aí enquanto fundamento epistêmico? Se é só o jogo de palavras, se não é o jogo de palavras, é o perigo? A transmutação? A ralação? enfim, tem muitas camadas, muitas categorias filosóficas. Acho que vou fazer meu pós-doc em filosofia, não vou fazer em artes cênicas não. (risos)

Eu olhando de fora, sem ser uma pessoa trans, me parece que tem um jeito de encarar a vida, de um saber ancestral travesti, de um saber que de certa forma é marginal e que traz formas de abordagens tanto artísticas como pedagógicas, me parece…

Com certeza. É de uma situação de marginalidade da sociedade que a gente enxerga os modos de criar e os modos de ensinar e de aprender, então a vivência periférica, também cruzada com a travestilidade, a vivência de muitas pessoas trans na prostituição, as vivências de muitas pessoas trans em situações de risco e de descriminação dentro da própria família, criam uma forma de estabelecer laços e de pensar o mundo numa urgência diferente que eu tenho chamado de transdanger, que traduzindo abarca tanto o sentido de as pessoas trans passarem por perigo e também serem perigosas. Transperiguentas.

Douglas Ricci – Entendi. Tem esse lugar do medo da travesti na rua, que vai assaltar,  machucar…

Dodi Leal – E vai tirar o meu lugar. Hoje tem outros tipos de medo…

Ah, aquela história dos ataques dos haters na matéria do G1, ‘homens travestidos de mulher roubando lugares de mulheres’ (3).

Ou então na academia. Homens que estudam gênero vão fazer o que? Aquelas né, ficam com medo das travestis. Quem tem medo de travesti? (risos)

(3) https://www.eca.usp.br/noticias/pos/professora-trans-dodi-leal-ministra-curso-na-eca-espero-que-seja-so-o-comeco

Douglas RicciA linguagem pode criar realidades?

Dodi Leal – Com certeza. A fabulação é um pouco isso né. E os diferentes tipos de fabulação, o bilhete por exemplo é uma invenção curta, é uma linguagem que acessa um lugar de uma forma curta e rápida. Então não só sim, mas como em temporalidades muito diferentes dessa realidade. Então a linguagem cria. Agora, as temporalidades que ela cria depende muito da situação, de qual  linguagem.

Douglas Ricci – O contexto em que está inserida…

Dodi Leal – Da urgência… Então sim, com certeza.

Douglas Ricci – Minha última pergunta é sobre o hackeamento dos espaços de poder, os tráficos de saberes, uma outra coisa que você fala bastante, e gostaria que você comentasse sobre o fato de ser a primeira pessoa trans a dar aula na ECA/USP (4)

(4) https://www.eca.usp.br/noticias/pos/professora-trans-dodi-leal-ministra-curso-na-eca-espero-que-seja-so-o-comeco

Dodi Leal – Acho que é uma estratégia de abrir caminhos mesmo. De ter outras  oportunidades, outros imaginários. Quando eu sou vista nestes lugares, muita gente, não só pessoas trans, mas pessoas cis também, entendem o mecanismo e respeitam esse mecanismo. Vão entender que é uma luta muito maior. E não está em jogo mérito, competência, nada disso nunca esteve em jogo. No meu caso particularmente, eu jamais faria algo que não sou boa suficiente, que não sou competente. Faço algo que eu posso fazer. Acho que isso todo mundo tem, ou deveria ter. Isso não é uma questão pra mim, por mais que estejam me atacando os haters nesse ponto, eu não sou assim. Eu só faço aquilo que eu sou excelente, competente. E ocupar esse lugar pra mim é isso, são imaginários. Abrir imaginários, criar imaginários, com linguagem… (risos)

Douglas Ricci – Com linguagem (risos). Isso é uma das coisas que mais me impressionou ao entrar em contato com seus textos, em um primeiro momento me pareceu ‘que loucura!’, é o fim, o apocalipse. Eles mexem muito com o imaginário do que deve ser um texto acadêmico, os assuntos acadêmicos. Vejo um novo imaginário a partir do contato com textos seus e da Isadora Ravena, por exemplo. É uma realidade. Primeiro foi imaginado, se transformou em linguagem e agora é uma realidade…

Dodi Leal – Total. E é o ato de escrever que nos torna escritoras, como sempre lembrava Boal sobre  uma frase do Antônio Machado “Caminhante não há caminho, o caminho se faz no ato de caminhar”. Boal sempre repetia: “Eu não sou pintor, mas ao pintar me torno pintor”. O ato de fazer nos faz. Então, a minha transgeneridade está muito associada à palavra, à relação poética da existência-corpo. Me perguntaram recentemente se vou publicar um próximo livro de poesia, eu pensei, nossa, verdade, eu tinha uma urgência muito grande na minha transição de publicar poesia, mas hoje a minha poesia já está tão espalhada nos espetáculos de teatro, nos textos teóricos, nas minhas aulas, que eu estou cansada de poesia, ah louca, não preciso de publicar um livro de poesia. Mas se o público está pedindo eu vou fazer.

Douglas Ricci – É interessante que você consegue trazer poesia pra dureza de um texto acadêmico, é impressionante a criação dos neologismos que você vai fazendo, e te conhecendo pessoalmente eu vejo que é algo que você faz cotidianamente, com muita naturalidade, o tempo todo…

Dodi Leal – Paranóica (risos)

Douglas Ricci – A paranóica do neologismo (risos)

Dodi Leal – É… não tenho nenhum neologismo sobre isso, se é isso que você está esperando.

Douglas Ricci – (risos) Não! Esse assunto nem estava no meu escopo de perguntas, mas me impressiona bastante… Agradeço demais sua disponibilidade de despender esses minutos aqui comigo para esse papo.

Dodi Leal – Mais uma vez agradeço pelo carinho e por essa conversa leve e interessante, amei as perguntas e este momento, obrigada! Aproveito para convidar todo mundo para assistir TRAVED: Palestra-Performance em Realidade Virtual no Sesc Pompeia, que acontece nos dias 15/07 (sábado, às 18h e 20h), 16/07 (domingo, às 16h30 e 18h) e 23/07 (domingo, às 16h30 e 18h).

Douglas Ricci – Muito muito obrigado

Se você curtiu este texto ou se este material somará na carreira do seu espetáculo, contribua com a nossa viagem ao Rio de Janeiro! Em breve passaremos pela cidade maravilhosa e traremos na mala uma série especial de críticas e reflexões acerca da cena carioca • $ 30 • $ 50 $ 100 $ 150 + • pellegrini.trigo@hotmail.com

Douglas Ricci é um artista da cena com diversificada formação e atividade. Ator, diretor, dramaturgo e crítico, foi aprendiz da Escola Livre de Teatro, da SP Escola de Teatro, do Núcleo Experimental de Artes Cênicas do SESI/SP entre outras escolas. Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado no PPGAC da ECA/USP. 

Dodi Tavares Borges Leal é uma performer, curadora, crítica, iluminadora teatral, pesquisadora e professora de Artes Cênicas brasileira. Tem colaborado em processos artísticos em todo país e escreveu trabalhos acadêmicos em veículos editoriais do território nacional e internacional sobre performance, recepção teatral, transgeneridades, pedagogia das artes cênicas e visualidades da cena. É criadora do conceito teatra, que indica a transição de gênero da área teatral do masculino para o feminino, assim como também criou o conceito luzvesti, aproximando os estudos de iluminação cênica aos estudos de gênero. É colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), e desde 2018 Dodi é professora da UFSB, Universidade Federal do Sul da Bahia.

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