ANNÁ – O CAMINHO DO SOM É MAGNETISMO. Mulher. Música. Vida. & Entrevista com Marina Calvão.

Por Filipa Aurélio

Texto: Anná

Entrevista: Marina Calvão.

       el clichê: a música me escolheu,

          ‘tentei escapar, não consegui’ 

vejo a vida como um caminho magnético, se você pisa longe dele, tudo atravanca. Frases curtas, de passo em passo a caminhada.

          a música acabou virando minha religião – eu que quase virei pastora na adolescência acabei por misturar trabalho, espírito e lazer. Como e danço onde ganho meu pão –

ah que confusão

          pois o samba nasceu assim:

“em volta do fogo

todo mundo abrindo o jogo”

canta, dança e joga capoeira

prepara a fuga das correntes

          canta, samba e dança

          pra sobreviver a mente

 

Entrei na roda pela primeira vez há 8 anos, nunca mais saí.

Quantas vezes senti que aprendia mais em uma madrugada na rua do que em um mês de faculdade.

AH A FACULDADE DA RUA

laroyê

os encontros das esquinas

as presenças divinas

de Geovana, Raquel Tobias,

Adriana Moreira e tantas outras.

          Prazer maior não há do que chegar no Samba e encontrar as Rainhas.

Prazer maior não há

sentar na roda, cantar e batucar

lá é o meu lar

e também meu altar

Na segunda-feira de cinzas paulistana chega a conta, 

a conta nunca supera a transcendência

a gente paga conta suando

lembrando do magnetismo que nos põe a andar

B  A  L  A  N  Ç  A 

pra lá e pra cá

B       A       L      A      N      Ç     A

m a s      n ã o      c a i

Por Aglae D’Avila

 

Quando eu tinha 16 anos

minha ‘eu de 80 anos’ me olhou lá de longe:

COMO VOCÊ QUER CHEGAR ATÉ AQUI?

ela me mostrou algumas opções de chão pra pisar

o ímã logo me puxou, fiz uma curva,

chorei chorei chorei chorei

e hoje eu gozo gozo gozo gozo

Graças à Elza,

graças à Dona Ivone Lara,

graças à Leci, Alcione, Jovelina, 

Clara, Elis,

também graças à novas,

graças a Samba de Dandara!

o tempo se renova

          de hora em hora

          sou engrenagem e manutenção

às vezes acho que estou louca

por levar a vida assim

então vejo minhas referências

e continuo a nadar

bum   bum   bum

continuo a nadar

 

Se fosse parar

                afogava

 

todo mundo levanta da cama

meio emburrada

nossas lutas diárias

um, dois, cem leões

que viram carne pro jantar

e agasalho pele pra esquentar

de fato quando unimos nossas vozes a força é bruta

Por Julia Leite

Há 8 anos vejo mulher ganhando espaço na luta

se se olho com lupa

muita muita mulher ainda muda

logo logo vai chegar nossa presidenta preta

instaurar o samba na agenda

levar o magnetismo a voar

vou lá

 

o ímã está a me chamar

a flecha veio me buscar

 

Por Wanderlei Lee

 Entrevista com a Autora

Por Marina Calvão

Anná, é um prazer imenso poder conversar contigo. E digo isso porque, pessoalmente, como mulher, me sinto muito representada pela sua fala, pelo seu som, pela tua presença como artista.

Pude acompanhar, creio que um dos seus primeiros shows em Sesc e isso foi lá em 2017… e desde então soube da consistência do seu trabalho. Como espectadora confesso, fico impactada pela ambiguidade que sinto entre a força e leveza da sua música. É como se ela fosse carregada de uma voz ancestral.

Como se de tua voz ecoassem muitas vozes femininas (mas com uma irreverência, uma descontração, uma coisa autêntica, sua). 

Aí, você começa seu texto belíssimo, cheio de sonoridade e de histórias dizendo que você vê a vida  “…como um caminho magnético, se você pisa longe dele, tudo atravanca.”

Acho demais isso. Porque fala também sobre como nos posicionamos na direção do que queremos, do que é nosso! Mas fiquei me perguntando, como você se deu conta disso? Quando foi que você percebeu que você poderia estar pisando num caminho que não era o que você tinha que percorrer?

Marina, que bom que você se sente representada por mim e pelo que eu faço. Acho isso uma grande responsabilidade, me sentir representada por mulheres. Então, sobre isso do caminho, eu sinto que esse é o tipo de coisa que a gente aprende de uma maneira muito intuitiva. Para mim vem muito na memória, as madrugadas que eu passei na rua com o pessoal do samba, sabe…

Os aprendizados de quando você está lá as três da manha, bêbada e tendo uma conversa mega profunda com algum mestre, eles dizem algo que te toca e vc diz “meu Deus, é isso”. Então me remete muito a esse lugar… E existe uma ideia branca colonizadora do caminho reto. Dá linearidade. Tipo “Elon Musk” né? Você só vai crescendo, acumulando e o sucesso é acumular , seguir reto e crescer seus números. E eu não acho que o caminho magnético tem a ver com isso, venho de uma ideia bem mais circular. Que no mundo se você for reto sempre, você vai ficar dando volta e vai ficar voltando ao mesmo lugar.

O mundo é redondo né? Então eu gosto de pensar nessa coisa de ir virando ali, a cada instante se questionando se é isso mesmo. Tudo bem, vou virar esta esquina e ver o que encontro ali e se permitir mudar de caminho. Mas sendo bem objetiva, eu venho de uma família que seguiu carreiras bem tradicionais e em algum momento eu tive que escolher uma faculdade e eu percebi que ou eu ia fazer alguma coisa relacionado a rate  e cultura ou não ia fazer muito sentido a minha existência, aí eu resolvi aproveitar esta minha existência, que foi ali que eu virei uma curtinha e desde então viro todos os dias… mas quando criança eu também já virava (risos).

Sim, faz todo sentido isso que você disse, sobre um caminho circular que a gente vai seguindo de forma intuitiva e meio que empírica também, né?

O que me leva a pensar que não há outra saída a não ser – Ser quem somos e fazermos o que viemos fazer. Mas não como se algo tivesse guardado ou predestinado (a nossa espera) mas que fosse de encontro com os passos firmes que damos! E nem sempre é fluido né?

É preciso persistência para seguir.  Me fala como você enxerga isso. Quando pensamos a presença das mulheres nas rodas de samba. Na criação e no caminho que as sambistas importantes abriram até aqui

Sobre o caminho aberto pelas que vieram antes, isto é uma premissa. O samba nasceu de um povo que foi trazido de um outro continente a quinhentos anos atrás e encontrou aqui outras referencias e vem de culturas muito matriarcais de Africa.

Aqui no Brasil o samba perde muito a presença feminina a partir da institucionalização das Escolas de Samba nos anos trinta, quarenta e quando elas passam a ocupar uma função mais de pastoras, que é o coro do samba e funções mais de produção, tipo cozinha… Mas a gente vê nessa retomada atual entre os últimos dez quinze anos, uma proliferação de grupos de mulheres do samba e do pagode, nesta mesma luta. E assim começa, daí começam a questionar: “Em tal lugar não tem mulher”,”Então vamos por uma mulher lá”.

No samba não é diferente e claro que a gente só consegue fazer essa movimentação porque tiveram as que vieram antes e no samba esses nomes são; desde Tia Ciata que é uma das matriarcas lá atrás no começo do século que recebia as rodas dentro da casa dela. Tinham varias outras tias. Hoje em dia a gente tem a ala das Tias Baianas nas Escolas de Samba por causa dessas figuras e ai mais pra frente a gente tem Dona Ivone Lara, primeira mulher compositora em uma Escola de Samba, na Império Serrano.

Depois a gente tem Leci Brandão, que vai com Cartola pra baixo e pra cima. Jovelina Pérola Negra. Clara Nunes não chegou a compor, ela tem uma ou duas composições só. Temos a Geovana que é uma compositora muito importante, principalmente para o samba rock e que estava com Pixinguinha e todo mundo que a gente conhece.

Chegou a trabalhar com Adoniran Barbosa, Elis Regina, Clara Nunes. E a Geovana está viva, mora aqui em São Paulo, está super presente, é uma amiga minha inclusive. Tenho honra de dizer que sou amiga dela e que participei do último disco dela. E é isso nossa presença chegando sem recuo. Esses dias eu vi uma reportagem sobre prazer feminino e dizia que a anatomia do clitóris só foi estudada em 2004.

Antes até 2004 ninguém tinha parado pra estudar, mal sabiam que existia essa benção chamada clitoris. Então a gente está vindo com toda força, com todo gozo. Não tem como, é para frente, fluidamente e com muito prazer.

Quem foi a sambista que te colocou no meio da roda?

Ah, fui eu mesma, isso ninguém nunca fez por mim, de me pegar pela mão. Eu fui indo sozinha. A primeira vez que cantei numa roda foi no bar Pau Brasil, cheguei lá numa Terça-Feira fria com minha cara de pau e pedi para cantar. Já frequentava e conhecia o repertório, fiquei ensaiando em casa no chuveiro, criei coragem e xablau!

Tinham três pessoas no bar, quase morri de vergonha, mas voltei na semana seguinte e pedi de novo para cantar, depois voltei de novo na outra e na outra, e assim fui conhecendo gente e caminhando.

Um roda de samba de mulheres no contexto atual tem um impacto socio-cultural na história do samba inegável, mas sinto que também tem algo de íntimo, um vínculo outro que acontece nas rodas femininas. Talvez de aproximação de narrativas, das dores e das conquistas. Para você, que tem estado nesse contexto, qual o papel fundamental da mulher na roda de samba?

Pra mim é bem parecida essa pergunta com a segunda porque a roda de samba nada mais é do que uma extensão, um espaço cultural, de festa e celebração e de luta social também.

Essa é uma pergunta bem ampla mas pensando na última experiência de roda de samba que eu tive com mulheres, que foi com Samba de Dandara (um grupo maravilhoso daqui de São Paulo), em comparação com o Samba de Aguidar (outro grupo incrível que estive presente na mesma semana e só tinha uma mulher, eu, sentada na roda)… especificamente o Samba de Dandara tem uma preocupação muito educativa e politica.

“Estamos celebrando, está super gostoso esse som que estamos fazendo mas nós enquanto mulheres não podemos esquecer nossos direitos”. Enquanto roda dos homens era bem menos militante. Então nós nos apropriamos muito deste lugar. Eu ouvi uma boa expressão ontem; “quem está incomodado que fale alguma coisa, porque muitas vezes o outro, não incomodado, não sabe nem o que está acontecendo.”

As rodas de mulheres sim sempre trazem e nos lembram da importância do nosso posicionamento enquanto a roda dos homens fica mais um pouco mais ali no entretenimento mas estou falando isso de uma forma bem genérica porque a gente fica tentando encaixar “homens e “mulheres” mas também existe a camada indivíduo. Tem samba de mulheres que nem levantam essas pautas de luta. Mas eu sinto que o samba feminino nasce de uma rebeldia nossa, “ah então é só vocês que tocam, que cantam?”. ”Não claro que não nós também vamos fazer nosso samba”.

Há posicionamento bem marcado sim, nas rodas femininas e que vai para além do entretenimento, geralmente são sambas mais políticos. Mas é sempre bom lembrar, que o samba, antes de vir deste lugar íntimo de vínculo feminino, ele vem do lugar de vínculo preto. De um povo que estava sendo escravizado e essas pessoas se juntavam para resistir e arrumar sentido para a vida.

Então se tem algum tipo de conexão e cumplicidade na roda de samba, ela nasce de uma outra parcela do povo oprimido. Quer dizer provavelmente o povo preto é mais cúmplice entre si numa roda do que as mulheres, entende? Por que é dali que o samba veio.

O que a música movimenta em você?

Nossa… Todas as minhas células, é meu motor para levantar da cama e seguir vivendo a vida

Nos dê um spoiler do seu próximo álbum?

Sim! “Brasileira” é o nome do meu novo álbum que vai ser lançado em Julho.

O conceito é: uma viagem no tempo, nos últimos cem anos de produção musical no Brasil, tendo como fio condutor o Samba e com muitas pitadas de modernidade.

É como uma linha do tempo da história da nossa música a partir do Samba, mas a linha do tempo sempre traz elementos contemporâneos. É o encontro do tambor com o beat, a fusão do passado e presente. É a primeira vez que assumo o Samba como carro chefe do trabalho, e é também a primeira vez que trabalho com samplers e sons digitais.

No meu primeiro EP “Pesada” não tinha samba, teve mais forró, maracatu com cara de MPB, com violão, bateria e baixo. Já o “Colar” meu primeiro álbum cheio, trouxe a idéia de música de colagem, que misturava tudo.

Rock’n Roll com Tango, Axé com Hip-Hop, com instrumentos acústicos e algumas poucas intervenções digitais Finalmente em Brasileira, o Samba vem como protagonista, mas ele se encontra com vários outros ritmos como funk, forró, Axé e Pop.O álbum está lindo, cheio de participações e misturas, estou orgulhosa que pela primeira vez pude produzir algumas faixas, dirigi o trabalho sozinha, com muitas parcerias sempre, mas o volante todo na minha mão.

Eu diria que é um álbum de Samba experimental, pois o Samba está vivo, pulsando e, portanto, se transformando.

Marina Calvão é editora em cinema e cultura no site Deus Ateu, é também formada em cinema pela FAAP. Atualmente atua na área de sonoplastia e edição.

Instagram: @mcalvao

 

Deixe um comentário