O Dilema do Médico – Por Marcio Tito

Por Marcio Tito
@marciotitop

Estrutura sensível do material e do autor –

É preciso viver, comprar e vender. Disso, infelizmente, sabemos todos. Partindo deste ângulo e aceitando tal escândalo, podemos concordar que as relações comerciais e liberais habitam e determinam cada centímetro da vida. Logo, todas as críticas ao modelo parecem esvaziadas quando postas, afinal, uma peça em cartaz, por mais atenta ou crítica que se mostre, também configura o corpo de mais um produto obscenamente posto na prateleira da cultura. E seria sempre assim – caso não tivéssemos notícia da inteligência e obra de um homem chamado Bernard Shaw.

A sagacidade de sua dramaturgia e estilo determinam um outra possibilidade retórica e crítica. Desloca em direções ultra-dinâmicas as “verdades de época” e as contradições inerentes ao processo da vida. Shaw, sob as vestes de um enredo simples, dialógico e cronológico, entrega revisões que as dramatrugias seguintes ainda não alcançaram.

Nítido, cruel, argumentativo e coeso é o teatro deste grande artista. Sua disciplina em direção ao indigesto da experiência do convívio solapa qualquer ideia que não se mostre rigorosamente pautada pelo processo do bom-senso e da lógica, contudo, embora tal introdução possa deixar a impressão de que somente a “técnica” infla processos da obra de Shaw, é preciso também definir que tudo, que toda a poesia de sua mecânica, acontece sob a mira de uma apaixonada determinação em direção ao coração dos dilemas filosóficos e apóricos que nascem sim do método, mas que só podem ganhar o mundo quando montados na cela de uma coragem alucinadamente capaz de arriscar tudo e todos – porque Bernard Shaw foi um parresista.

O Dilema do Médico, esquematicamente perfeita e capaz de entrar e sair de todas as possíveis contradições do tema, apresenta as disputas entre aqueles que programam suas vidas para cumprir toda sorte de mau-caratismo legalizado e aqueles que não gozam de tanta paciência e optam pelo mau-caratismo selvagem e livre de impostos e CNPJ. Vaidade, hipocrisia, conservadorismo, luta de classes e o contradito da Beleza atravessam os conteúdos imaginados pelo autor e se atualizam perante a fisionomia do tempo presente.

Tudo o que no texto está posto enquanto impressão do autor acerca dos homens, durante a montagem e dentro de um tempo acintosamente mais corrompido, ressurge enquanto apocalíptica e desastrada “evolução da espécie”.

A presente montagem –

O teatro é relevante porque nos prova ser capaz de atritar os homens e as mulheres de todos os tempos, como teria dito Diderot. Contudo, como é o caso deste espetáculo dirigido por Clara Carvalho e protagonizado por Sérgio Mastropasqua, o teatro também pode se revelar urgente e inescapável quando sua força está no grande e quase impossível acordo que se faz entre os vivos e os mortos, ou entre o passado e o presente.

Um grupo de criativos e criativas que sabe rastrear, interpretar e entregar não somente a íntegra, mas também espírito de uma obra cujo silêncio no papel nos diz pouco mais que algumas boas ideias, está determinado ao encontro com uma verdade tão imortal quanto humana e universal – O Dilema do Médico, cuja pré-estreia no Teatro do Masp fora inesquecível – atinge o limite do bom gosto e mantém do começo ao fim um contrato com tudo o que Shaw procurava significar.

Sérgio Mastropasqua, Rogério Brito e Nábia Vilela alcançam o impossível quando encontram destaque diante de um elenco tão coeso e bem orquestrado, assim como Clara Carvalho conquista sublinhar positivamente o que já era perfeito quando, com graus de teatro contemporâneo super-bem-medido, introduz situações sonoras ao mesmo tempo que falas e atmosferas se instauram.

O trabalho impressiona por criar na mesma frequência que Shaw, traduzir com clareza as dinâmicas mais sensíveis, entregar um texto absolutamente pertinente para o momento e, como se fosse pouco toda essa bagagem de acertos, ainda oferecer lapsos de uma linguagem que elegantemente retoca convenções do clássico e sugere digressões aos teatro recente.

Clara Carvalho confirma seu lugar enquanto uma das mais importantes e decisivas direções do país. Mastropasqua aponta para embates vindouros – qual outro grande papel veremos ganhar sua perfeita dicção e seu inesgotável repertório de gestos? Picasso, o negociante em O Jardim das Cerejeiras e Peter Stockman já ganharam suas versões finais. E Rogério Brito, possivelmente, já esteja posto entre os mais especiais atores de sua geração.

O Dilema do Médico restaura a ordem no teatro brigadeiro. Redefine critérios e inspiram o futuro. Das mais especiais e imprescindíveis montagens da década.

Aplausos especiais para Bruna Guerin, Wagner Antônio, Luti Angelleli e Nábia Vilela – configuram o ponto de apoio que ajusta as forças do material e trazem vigor e frescor para que os papéis mais presentes e palavrosos encontrem conforto e estabilidade.

Obs: Bernard Shaw não frequentaria o coquetel de seu próprio espetáculo, era vegano. E isso revela um pouco o que é que a montagem debate de modo profundo e material. A realidade e seu imperfeito ajuste perante aquilo que gostaríamos de sermos capazes de realizar, e não somos.

   


 
FICHA TÉCNICA
O Dilema do Médico
Direção: Clara Carvalho. 
Elenco: Sergio Mastropasqua (Colenso Ridgeon), Iuri Saraiva (Louis Dubedat), Bruna Guerin (Jennifer Dubedat), Oswaldo Mendes (Sir Patrick Cullen), Rogério Brito (Cutler Walpole), Renato Caldas (Sir Ralf Boomfield Bonington), Luti Angelleli (Blenkinsop), Guilherme Gorski (Schutzmacher), Nábia Villela (Emmy), Márcia De Oliveira (Minnie), Rogério Pércore (Redpenny, Morte e Secretário) e Thiago Ledier (Jornalista).
Trilha original: Gregory Slivar. 
Cenário: Chris Aizner.
Figurino: Marichilene Artisevskis. 
Iluminação: Wagner Antônio. 
Assistente de direção: Thiago Ledier. 
Produção geral: Rosalie Rahal Haddad. 
Produção: SM Arte Cultura.
Direção de produção: Selene Marinho. 
Coordenação de produção: Sergio Mastropasqua. 
Direção de palco: Henrique Pina e Ângelo Máximo. 
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes. 

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