O Antipássaro – Por Marcio Tito

Um espetáculo que dignifica o segundo semestre – O Antipássaro

Por Marcio Tito
@marciotitop

O avivamento de uma cultura teatral inscrita no gesto e no instante, sem outro convite – que não o de uma brutal presença mediada por poemas viscerais – revela não só musculatura de uma das maiores poetas da história: revela também, no chiaroescuro de uma cena perfeita, o que é um ator e o que (ainda) é o instante teatral.

A poesia, embora mais antiga que o próprio teatro, é uma das filhas do ator e da atriz. Acontece grandiosa no papel, mas torna-se humana quando inscrita na voz de quem diz. Tanto por esta medida, quanto pelas medidas que eu mesmo não poderia escrever (porque não existem palavras para tanto), um espetáculo que desde o primeiro gesto amaldiçoa-se a ser “somente teatro”, em qualquer tempo e em qualquer cultura, encontrará aquele monumento eternamente capaz de emocionar os homens e as mulheres (sejam ainda homens, sejam ainda mulheres).

Elias Andreato, mestre no assunto, empresta o seu condão a Nilton Bicudo (cuja excelente interpretação confessa uma legítima e verdadeira e profunda conexão com a artista). Contudo, amadores e amadoras ou inexperientes de toda ordem e lugar, acalmem-se! Estamos falando de uma conversa teatral marcada por duas vozes testadas nos mais variados estilos e sucessos. Não vá pensar que basta dar forma de enunciação aos poemas de qualquer artista e que assim estará resolvido “o problema de dizer”…

Embora este texto (que deveria ser uma análise, mas tornou-se uma ode) esteja sempre querendo falar sobre a simplicidade presente em cada um dos matizes da cena, vale atentar-vos que a “simplicidade” aqui apontada, hiperbólica por excelência, remonta ao simples de Leonardo Da Vinci – sendo a simplicidade o último grau da sofisticação!

Parece impossível que só agora a temporada tenha recebido um trabalho cuja mecânica entrega o que há de mais natural na cena. E o atraso, neste caso, é também um pouco “dedo na cara” de uma geração que tem se provado profissional em inventar não tão bem e conservar de modo pior ainda.

Nilton Bicudo faz muito e faz pouco. Junto aos expedientes da direção, da luz e do som, arquitetando uma cartografia de simplicidade capazes de colocarem todo o “efeito especial” da cena nas dimensões do tempo e do instante, o artista emana sólidos e translúcidos pedaços de alma e de carne da poeta. É um trabalho de retidão, de pequenas e sombrias percepções. Um trabalho minucioso. Epifanico. Vaporoso.

Os minutos passam e estamos sempre mais dentro e nunca fora, nunca fora!, do universo seguro e cheio de lugares que a encenação sugere, muitas vezes, com a simples manifestação de um olhar mecanicamente demorado ou apressado diante da plateia. Todo o aparato se constrói ao redor da fala e do sentido da fala. É, sem sombra de dúvida, dos mais elegantes e afirmativos destaques da temporada. Um prazer que Andreatto e Bicudo emprestem ao tempo o encontro de seus teatros.

Aplausos.