
A segurança da direção de Erica Montanheiro, como em um exercício de nitidez contínua, percebe os sabores da boa e sofisticada dramaturgia de Luana Frez e potencializa o esquema entrecortado do material.
Luana, jovem autora, evoca partituras rodriguianas para manifestar um universo cujas dimensões menstruam com a mesma dinâmica de quem se agita para a aventura da vida, e tais circunstâncias, impossíveis para autores estrangeiros às vivências reveladas, encontram perfeita adequação no inusitado deste Vestido de Noiva (que veste o corpo das molecas que alimentam o material e traduzem para a cena a pronúncia da consciência de uma jovem que encontra as aflições “do feminino” em cada uma das vértices da vida).
Os tons de comédia, outra vez positivamente rodriguianos, apresentam o Tempo enquanto “tragédia indecisa”. Não sabemos se sangrar é sempre ruim, não sabemos se viver é sempre bom, não sabemos se saber é sempre saber, não sabemos se amizades serão sempre para sempre ou, como na obra, para além do “para sempre”.
E é justante esta a tônica que melhor se realiza pelo esquema das ótimas e sinérgicas interpretações do trio de artistas (Cynthia Falabella, Gabi Costa e Ligia Yamaguti).
Impressiona a forma orgânica com que a densidade do material dramatúrgico se realiza na cena. Boas soluções de luz e vívidas atmosferas entregam os melhores efeitos do texto e, como num percurso de livre associação, sem grandes ruídos, acompanhamos com boas leituras a sequência de dimensões impressas pelos bons e informativos diálogos (existe, em certa medida, por toda a obra, uma respeitosa obsessão por comunicar o que se diz – direção, texto e atrizes, cada qual por uma estrada, afirmam tal proposição e acertam na entrega da mensagem).
Cynthia Falabella é o destaque da cena. Sua performance encontra marcante evolução e oportuno grau de consequência (sobretudo no trânsito entre as dimensões e também nas cenas em que o silêncio configura a maior parte de suas “falas”).
Gabi Costa e Ligia Yamaguti, com papéis menos evolutivos, porém com ótimas direções até um coro dissonante, também constroem, com excelência e boas partituras, os espectros de suas personagens (com destaque para o trabalho de voz da Gabi e para a boa configuração do gestos de Ligia).
De modo geral, mas sem resumir o efeito do material ao seu universo de referências, a obra propõe uma dramaturgia contemporânea ainda capaz de dialogar com a contradição dos autores do passado ou, em outra análise, interessada no contato com o melhor de tais heranças.
Entre os Trilhos e a Baleia confirma uma ótima investigação ainda dramática, porém com tons de autoficção. Um pouco de tradição e um pouco de vanguarda, no final de tal percurso, fazem restar somente uma saborosa emoção por estarmos vivos e ainda capazes de interrogarmos o destino
Aliás – será que eu gosto mesmo desse final?
Ficha técnica
Direção: Erica Montanheiro | Diretora assistente: Ana Elisa Mattos | Dramaturgia: Luana Frez | Elenco: Cynthia Falabella, Gabi Costa e Ligia Yamaguti | Participação em vídeo: Ana Elisa Mattos, como mãe, e Luciana Ramanzini e Katia Daher, como vizinhas | Cenário, figurinos e designer gráfico: Kleber Montanheiro | Desenho de luz: Gabriele Souza | Direção audiovisual: Julia Rufino | Mapeamento de vídeo: Rafael Drodro | Trilha Sonora: Ana Elisa Mattos e Luiza Akimoto | Desenho de Som: Luiza Akimoto | Fotografia: Karim Kahn | Cenotécnico: Evas Carretero | Assistência de figurino: Marcos Valadão | Costureira: Salomé Abdala | Operador de luz: Rodrigo Silbat | Assistência de produção: Lucas Vanatt | Produção: Anayan Moretto e Lolita & La Grange Produções Artísticas | Produção original: Núcleo de Dramaturgia SESI-SP | Realização: SESI-SP
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