O Dourado quebra-mar de Lambe-Lamber referências nostálgicas de Bala Desejo – Por Lia Petrelli.

O carnaval ainda baila, seguindo intenso noite adentro, desembocando em praia carioca recém desperta em sol Dourado Dourado, revelando notas rosinhas (…)

Por Lia Petrelli

Sim Sim Sim é o nome do recém-lançado álbum da banda Bala Desejo. A obra traz consigo aromas nostálgicos de passados presentes, e futuros atravessados recentemente, como se fosse possível vislumbrar ou definir o que vem ou está porvir por detrás das coloridas cortinas sonoras entremeadas na construção da narrativa deste álbum, que nasce quase por acaso, como a maioria das delícias da vida desperta, não fosse o potencial já anunciado pelo grupo de amigos que compõe a banda.

Mesmo que você não reconheça Dora Morelenbaum, Júlia Mestre, Lucas Nunes ou Zé Ibarra, o grupo já está inserido na música brasileira há tempo suficiente para saber costurar com precisão as composições que alteram o tempo e o espaço do hoje, sem deixar de referenciar o ontem com sabor de admiração. Isso, pois, como já mencionado pelos próprios artistas, as sonoridades que auxiliam nossa suspensão, enquanto ouvintes, nada mais são do que o repertório já intrínseco na produção de cada um deles, como intuições auditivas que foram apresentadas na infância e seguem construindo o caminho de vozes que já parecem apaziguar o anseio anunciado há tempos pela cultura brasileira: viver o suficiente para escutar a voz do tempo gravada por jovens de nossos anos, por mais clichê que isto possa parecer.

O texto que você está prestes a ler se embrica entre referências e narrativas, leituras derivadas de diversos dias, em variados momentos, sob a lente de sortidos sentimentos, já que me coloco aqui como admiradora do trabalho de artistas contemporâneos a mim, que tem mesma idade que eu e, penso comigo, os mesmos instintos. Hora ou outra alcançarei referencias sabidas, outrora intuídas, mas que seguem uma as linhas duma história cantada por Dora, Júlia, Lucas e Zé.

No começo de tudo, somos lançados ao play.

O ambiente que introduz o Lado A de Sim Sim Sim começa numa manhã de carnaval, nos levando a degustar a pequena amostra do desejo já exposto no nome da banda.

O grupo que conversa poderíamos ser nós mesmos, pegos pela vida durante o after que desemboca num boteco. Entre risos, relembramos as peripécias da noite anterior, desejando continuar na festa para acompanhar a banda que sobe a ladeira numa Kombi carregada de jogos estéticos alá cinema marginal, soprados pelos filmes da Belair.

Ruídos megafônicos nos levam aÔ Abre Alas de Chiquinha, convidando os personagens que deram impulso para que o grupo formalmente se formasse, a saírem dançando continuamente, como fizeram os personagens de Rogério Sganzerla em 1970, decididos a voltar para casa, quando descobrem o mapa perdido sob sanduíches de mortadela, e decretam que o Brasil está lá, fora da página da revista.

Quem nos embala no começo dessa história é o radiante sorriso de Teresa Cristina, pedindo para que Mosquito fique para aproveitar o que ainda está só no começo, já que ao longe o grupo nos acoita na sonoridade do carnaval com pulinhos imagéticos, anunciando sua chegada, vendendo balas, comprando desejos, prometendo bacantes beijos.

Lá no fundo o balconista lança a pergunta: o troco pode ser em bala, né? (já que as moedas reais estão escassas) ao que vem a resposta de Bruno Berle – outra potente voz que cresce por aqui – Embala Para Viagem!, porque é preciso que nos movamos já, no momento mesmo em que a Kombi passa, ou então, perderemos o embalo do relógio. A faixa fecha o começo do não-fim, com Caetano Veloso anunciando a potência do Sim, nos convidando a dizer, sempre.

Apenas com essa faixa, introdutória, é possível enxergarmos as potências que o grupo amarra: além de conhecidas vozes que dão base para o acontecimento da carinhosamente apelidada comunidade hippie, pela mesma sorridente Teresa, também estão presentes as vozes crescentes de nossa geração, que aparecem pinceladas ao longo do disco todo.

Baile de Máscaras é o Recarnaval tanto aguardado em conjunto, em gritante espera, durante os cancelamentos das ruas – este também anunciado precocemente por Lucas Vaz, quem acompanha a banda no registro das imagens estaladas sob caóticas momentâneas do acontecimento. Embora não seja intuito do grupo que o álbum se construa sobre a narrativa do isolamento, é impossível não pensarmos nele ao escutarmos esta faixa, que intencionalmente ou não, celebra Guilherme Arantes no reencontro apaixonado, ardente e cheio de línguas de jovens que não se apartaram depois do toque final da orquestra, arrastando os dias de solidão num abraço; sustentada ainda pelos andaimes da Construção, minuciosamente cuidada por Zé Ibarra, de quem pude escutar, pessoalmente e mais de uma vez, o carinho emanado na intensão que abre o disco recheado, já que na segunda parte da música, as cordas e sopros arranjados por Jacques Morelenbaum, mencionam a tensão do pedreiro que despenca do prédio atrapalhando o sábado, acompanhando os mesmos quatro versos de Chico em 1971.

Julia Mestre, Dora Morelenbaum, Lucas Nunes e Zé Ibarra | Foto: Lucas Vaz / Acervo Bala Desejo / Divulgação • @lvcaz

Fala mais!, pede Lua Comanche, na continuação da festa que se estende até de noite.
No mistério da lua cheia a melodia descrita por Bala Desejo como sonoridade revelada só depois de intuída, abre as lentes e as portas para o futuro, dançado nas bolas de cristal de violões e sopros que caminham por estradas escuras em busca do íntimo da multidão, criando um canto de guerra derivado dos povos que saqueavam cavalos europeus e demarcavam seu território sob a luz do luar, onde atentos poderiam tudo enxergar.

A faixa que segue é tão explícita que sequer precisaria de descrição, mas como estou passeando pela narrativa do álbum – político por si só –, avistamos a Kombi dirigindo a caminho das matas, reivindicando nossos próprios territórios através do corpo, que há muito sucumbe em direções de armadura. Nos embalando no reggae dos encantos, Bala Desejo nos convida a Clamar Florestas, cantando o respiro das árvores vermelhas, colonizadas e catequizadas, transformadas em monocultura agrícola, arrastada e afogada desde 1915 no lombo de animais. Tudo isso, poeticamente narrado na voz de Maria Gadú, dançando na contramão da boiada que segue passando pelos campos verdes de nosso país.

O carnaval ainda baila, seguindo intenso noite adentro, desembocando em praia carioca recém desperta em sol Dourado Dourado, revelando notas rosinhas que aparecem quando nos queimamos pela paixão, cantarolada por corpos que encontramos nas festas anteriores, afinal, por mais impossível que seja o amor, ele acontece. Não posso escrever sobre essa faixa sem me arrepiar nas lembranças eternas das despreocupações de mergulhar nos amores que nos atravessam a vida, exalando exatamente corpos dourados pelo sol, estendido até as estrelas do cavaquinho de João Felippe.

Acontece que no meio da paixão, somos pegos pelo balanço latino de Daniel Conceição, Marcelo Costa e Thomas Harres, lembrando do trabalho que deve se seguir depois da festa da carne. Água, por favor, pedimos no meio da areia, arrastados pelo que ainda não sentimos da ressaca.

Mas, e a Kombi, que precisa ainda derramar balas de desejo por aí?

Bom, na volta para a vida real, entre um trabalho e outro estamos Nesse Sofá, no looping midiático dos desastres que atropelam nossas paixões recém despontadas, sem renunciar à poesia, já que as frases cantofaladas são dignas de compor a sala inteira, aguçadas por Dora Morelenbaum, dona de toda conversa afinada. A ressaca na sarjeta, a rebordose de sairmos dos bloquinhos, vivos, e voltarmos a escutar o martelo, a furadeira que preenche os dias da cidade, no circuito digno de campo de obras, são cenários presenteados pela guitarra enfurecida de Tim Bernardes, farta das métricas da poesia.

Assim, depois de destruída a ilusão da festa, caímos no apagar das luzes, embalados por Nana Del Cabello Grande, com sutis notas amarelas vindas do violão de Lucas Nunes. O sol que se põe mistura os jantares sendo postos nas mesas amadeiradas pelas flautas de Zé Ibarra, e o canto do grupo é a imersão intensa no poço dos sonhos.

Depois do sono bem dormido, e de nos conformarmos à realidade, somos lançados ao Lado B do álbum, composto e pensado como disco de vinil, que em tempo estará em nossas casas.

No caminho para o trabalho, no pós-carnaval que todos sabemos o quanto dói, somos pegos desprevenidos pela Kombi quebrada na estrada. Fodeu. Pelo menos em grupo, força para empurrar é o que não falta. Com o motor de volta aos trilhos, somos lançados novamente ao futuro, na sonoridade que colorirá a próxima faixa, citando de longe o Divino Maravilhoso objeto Não Identificado na gravação de Gal. Regina Casé, no meio do motor, antes de entrar no fatídico labor, nos desvenda os segredos do desbunde passado da segunda faixa do álbum, e ainda Caetano, no meme conhecido, anuncia a internet que nos invade quando pisamos nos compromissos. “Eu vim aqui pra perder o meu tempo…” vai a voz.

E assim seguimos, como máquinas, para um monte de reuniões, enquanto a mente permanece tra-lá-lá dos corpos lambidos nos dias anteriores. A voz de Júlia Mestre arranha certeira as lembranças apaixonantes da rainha do rock, embaladas por pop-glitters arroxeados como a língua que compõe a cena Lambe-Lambe, cantando delicada que derramar delícias não é passível de espera alguma.

Julia Mestre, Dora Morelenbaum, Lucas Nunes e Zé Ibarra | Foto: Lucas Vaz / Acervo Bala Desejo / Divulgação • @lvcaz

Justamente no embolar de línguas é que se descobre o prazer da letra, que parece sem pé nem cabeça, mas tem melopeia a beça. É exatamente o que cantam, citando Caetano (eu diria, se não soubesse que é Lucas Nunes o produtor de Meu Coco – aqui fica fácil se perder, mas é bom que assim seja, já que o novo impulsiona o mestre, e a sopa menciona o novo). Tim (Bernardes), Tom (Karabachian), (Duda) Beat, (Duda) Brack, Ana (Frango Elétrico), Rubel e (Sophia) Chabla(u)blá são os compositores indiretos, citados nas músicas, pincelando talentosos nossa boca a queimar.

Batucando os pensamentos de Passarinha que diz e fala a todo momento, as línguas continuam no suspiro da dança, derretendo e confundindo bala com desejo na sensualidade balançada lá e cá que confunde mar a mar, declarando escarlate o fogo latino das mulheres, intensas, renegado o decreto dado do país que não quer se mesclar, mas que continua, até o fim repuxando o berimbau. Essa também é a hora da história que nos entregamos completamente ao desconhecido. É só prazer que pode dar amor, quando nascido da carne?

A resposta em uníssono descompassado despencando do céu em chuva caindo em mar aberto sussurrando que Sim.

Seguimos as ondas de nossos afetos, que às vezes morrem à beira-mar, tocado lugares desconfortáveis demais para serem discretos. Caímos no marasmo pré-acordado, e o profundo azul necessário perde para a conformidade. É o preço a ser pago pela liquidez de nosso tempo, nós, que não sabemos nos calar diante da mesmice da escassez. O minguado choro, que ao invés de berrar, escorre, ilumina questões reais sobre os inúmeros prazeres que somos capazes de vivenciar, intensificando os finais das faixas, romantizadas em acordes alá Tom Jobim, que automaticamente despertam poesias sem fim. Referenciados, os clássicos sobrevoam a paisagem com perguntas sinceras sobre os próximos passos das paixões. Sopradas, as repostas de Diogo Gomes, Marlon Sette e Gilberto Pereira abraçam o incerto conversado em espanhol, colocando em jogo um diálogo que foge as nossas esferas afetivas nos dias de hoje: eu sinto que você não me vê, e isso não me basta, me sinto Muito Só. Desembocam em violinos as contradições postas nas frases, aumentando de um lado o intenso desejo de viver o amor, calando com bala pegajosa as dúvidas sobre o que virá depois, afinal, estamos na Kombi. Hora ou outra a viagem terá parada.

O ponto final é a descoberta do tempo.

A Cronofagia urge os átimos engolidos, vindos dos ventos, projetados nas janelas da alma.
O tempo para pensar sobre o que sentimos, como sentimos e o que deveríamos, ou não, fazer com tudo isso. A reflexão se demora no mergulho da vida. Com frequência encaramos o intenso nada, que de longe parece não ser capaz de cortar tanto assim nossas cordas vocais. Nos impedimos, sozinhos, de navegar as memórias dolorosas que todos, sendo corpo, carregamos. Ao mesmo tempo em que poderíamos planar sobre nossa própria história, individual e coletiva, sabendo que o tempo, assim como a terceira margem do rio, jamais se repetirá outra vez e não há motivos para não mergulhar nele.

O álbum de Bala Desejo fecha fazendo menção à todas as pessoas que participaram de sua construção, reivindicando, outra vez, o espaço não dado a nomes essenciais para a criação de uma obra, que como sabemos, não é feita a poucas mãos.

Assim, depois desta lambida pela obra de Bala Desejo, me sinto inclinar para a análise de como o grupo pôde explorar com exatidão certas melódicas notas que nos levam à memória, como é possível ver nos comentários do público, que imediata e simultaneamente descobre que, apesar de soarem como as vanguardas, as vozes também perpassam por nuances nunca antes escutadas. Claro, trata-se de uma obra composta por pessoas do agora, famintas pela troca. Durante todo o álbum somos convidados a participar da música, repetindo sopros, violinos e batuques cromáticos em nossa própria voz, reverberando as canções como coro infinito, que se amplia, multiplicando a multidão.

Julia Mestre, Dora Morelenbaum, Lucas Nunes e Zé Ibarra | Foto: Lucas Vaz / Acervo Bala Desejo / Divulgação • @lvcaz

O que mais me encanta é a mescla de suspensões desejantes que os artistas souberam costurar, tanto nos cenários propostos pelo enredo da obra, quanto nas imagens que inundam as redes. Parecem mesmo ter saído dum outro século para disparar a bala para o futuro, no projétil conjunto que acalenta as confusões emocionais de nossa época.

Não apenas jovens confundem amor com paixão, as discussões propostas pelo canto angelical de Dora, Júlia, Lucas e Zé tensionam assuntos urgentes sobre a redescoberta de nossos afetos, atordoados o bastante para poder nos atropelar diante de toda construção, amorosa ou não, das essências que compõe a verdadeira entrega de todas as coisas que nos edificam enquanto seres pulsantes, mas que parecem minguar na fome, pela velocidade com que se desfazem nossas atuais relações.

A contradição proposta por Bala Desejo é certeira, as melodias que nos confundem, passeando entre ontem e hoje, são também o que encantam nossas vontades.

Lia Petrelli é artista visual, psicanalista e poeta. Pesquisadora da escrita assêmica, mistura caldeirões de linguagem a partir do audiovisual. Registra shows ao vivo propondo movimentos e ritmos na edição, é diretora de arte e cinema. 
Lia acompanhou Bala Desejo durante o pré-lançamento de Sim Sim Sim (vídeo)
@liapetrelli @assemica 

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