,Uma série de violações simbólicas – Entrevista com Juliana Notari – Por Marcio Tito.

Por Marcio Tito

Vestida de enfermeira, em Amuamas (2018), a artista repetia o ritual de carvar uma fenda na forma de vagina, dessa vez em uma árvore centenária e com um espéculo e seu sangue menstrual. Foto: Acervo pessoal
Amuamas (2018). Foto: Acervo pessoal

A performer e artista visual Juliana Notari, ao centro da equação entre ser e fazer e mostrar, sem capitular ao contexto, cria um poderoso depoimento super-capaz de sair e voltar para seu eixo, renovadas vezes, com renovadas intensidades e dimensões.


Travar contato com sua produção, ler seus relatos e outra vez encontrar a sua obra, sob várias perspectivas, abrindo inúmeros canais possíveis, reformula significados, resignificações, e identificações.

Um caminho sem final, mas com inúmeras bifurcações, desenha-se na inteligência de sua confirmação estética e intelectual acerca do que a artista produz (e acerca do que a artista produz quando produz).

As “polêmicas” que a comentam, quase sempre claramente apartadas do significado profundo de sua obra, são parte de uma linguagem rudimentar que, para acessar o que não se pode compreender por via cartesiana, reduz ao limite o objeto artístico e o conflagra entre pequenezas e a política do dia.

A polêmica é o verbo infértil de uma sociedade nada porosa e assim, para o público menos honesto ou mais ressentido, Juliana surge como se sua obra configurasse um problema de época, e não um projeto real, sistematizado e legítimo, de exploração dos nossos silêncios e pactos coletivos (logrados em toda e qualquer época passada ou recente).

Sua fala e sua obra formatam um ciclo de dúvidas e intuições capazes de uma completa renovação. Com clareza e disposição, mas sem perder em devaneio e intuição, Juliana acessa o coração de uma beleza dolorida.

Boa leitura!

Symbebekos, performance feita pela primeira vez em 2004, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, nasceu do medo. Foto: Acervo pessoal
Symbebekos, performance feita pela primeira vez em 2004, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, nasceu do medo. Foto: Acervo pessoal

MT – Seu comentário visual está constantemente intrigado pelo significado das violações. Do sexo, do corpo, da terra, de uma árvore… como você percebe a relação das pessoas com este aspecto? Em geral, em comentários mais genéricos, vejo pessoas que imediatamente alocam a sua produção na chave “feminista” e, no contexto da atualidade, o feminino é também uma violação do status quo, para além da pauta organizada enquanto “feminista”. Enfim, não é uma pergunta… é muito mais uma deixa para juntos investigamos essa adjetivação e como você a recebe…

Juliana Notari – Pois é, esse aspecto da violação, da intrusão (muitas vezes acompanhada pela violência) faz parte do meu repertório poético. Afinal, na realidade, somos todos frutos de violações históricas. O genocídio indígena, a escravização dos povos africanos, a violência milenar do patriarcado contra dos corpos das mulheres, contra o corpo da Terra – incluindo suas mais variadas espécies – são violações; são feridas traumáticas que continuam nos violentando e traumatizando até os dias atuais. É visível (e mesmo esperado) que quando exponho algumas dessas violações nas minhas obras – na maioria das vezes através de performance – o público venha a sofrer algum tipo de impacto emocional.

A videoperformance Mimoso (2014) é um bom exemplo desse aspecto recepção da violação pelo público, porque nela essa relação é abordada de modo enfático e até mesmo cruel.

Em Mimoso me deixo ser puxada nua na areia da praia por um búfalo na Ilha do Marajó e ao saber que o mesmo seria castrado, amplifico minha relação com o animal incorporando o processo da sua castração na performance, ingerindo o testículo do animal cru em um processo ritualístico. Assim, incorporo num ritual um gesto cruel naturalizado no meio rural que é a castração animal sem anestesia.

Nessa obra o impacto do acesso ao Real (aqui falo do real no sentido lacaniano) é tão brutal que o público muitas vezes reverte esse impacto traumático em raiva contra mim, no caso, a figura do artista. Porém, quando a pessoa sabe que eu apenas incorporei aquele acontecimento dramático na performance e que se trata de um gesto frequente na pecuária, a pessoa de alguma forma passa a ter outra abordagem em relação à obra e a sua implicação nela.

Além da violência física há uma série de violações simbólicas que atravessam essa experiência. A transmutação antropofágica que ocorreu no ritual de Mimoso não somente sublinhou meu devir-animal, mas também realçou a incorporação de uma força libidinal masculina. Assim, a suspensão das convenções e normas vigentes são evocadas quando inverto os papéis de gênero. Uma mulher nua, bastante feminina, comendo o testículo cru de um animal viril suspende ou reverte certas noções e expectativas relativas ao feminino. Podemos dizer que há uma transgressão que potencializa um outro feminino, ao evidenciar que a força viril da glândula masculina – do testículo – também alimenta e potencializa a mulher, não apenas o homem. Nesse sentido, o trabalho evoca a desconstrução das normas de gênero cristalizadas na cultura ao lançar um olhar enviesado que enfrenta o ponto de vista antropofalocêntrico.

Mimoso é um dos trabalhos que faz parte da pesquisa sobre gênero e sexismo que desenvolvo há anos. Na realidade as questões referentes à presença do corpo feminino em contraposição a uma sociedade que se orgulha da virilidade e do falocentrismo sempre fizeram parte da minha poética. Entretanto, a minha postura em assumir o feminino – e o feminismo como questões centrais na minha obra – só ganhou força recentemente. Isso porque, além dessas questões circundam a minha obra questões relativas a determinados temas também importantes: nascimento e morte, sexualidade, relação entre ficção e confissão, trauma, relações de cumplicidade/testemunho e encontros entre animalidade e humanidade.

Embora o termo feminino já estivesse incluído no vocabulário da minha produção, eu costumava preferir colocá-lo entre aspas em vez de ressaltá-lo em meu discurso, e associá-lo às teorias feministas por temer algum enquadramento temático. Mesmo assim, alguns curadores sempre insistiram em vê-lo nesses moldes. Me parecia mais essencial entender que meu corpo fundava minha produção e que a dimensão de sua identidade cultural se dava de modo bem diverso das produções artísticas que se colocam como crítica da política e da cultura: era a dimensão traumática que sempre me pareceu mais evidente.

Entretanto, após a experiência da performance Amuamas (2018) a auto-percepção do feminino em minha obra se ampliou. Amuamas foi realizada na Ilha do Combu em Belém do Pará. Em um gesto de persistência, carregado de força mística, eu adentro a floresta amazônica carregada de instrumentos cirúrgicos e meu sangue menstrual, em busca da grande “Mãe Sagrada da Floresta”, a centenária árvore samaúma para realizar uma ação ritualística e intrusiva, que finda por deixar uma marca encravada na floresta. Aqui o aspecto da violação a que você se referiu se ocorre novamente.

Esse alargamento acabou por alcançar também sua dimensão feminista de modo mais afirmativo. Afinal, como disse, as questões referentes à presença do corpo feminino em contraposição a uma sociedade patriarcal, sexista e falocêntrica sempre estiveram presentes em meus trabalhos.

Mas, é importante ressaltar que esse meu tom mais realçadamente feminista passou a ser amplificado também pela força dos processos que os feminismos protagonizaram nos últimos anos. No centro da revolta global, talvez o feminismo seja o principal protagonista das lutas atuais contra o neoliberalismo. Apesar de conseguir situar meu trabalho no contexto da luta feminista de hoje, insisto que percebo que ele alcança as questões feministas principalmente através de uma dimensão traumática fundada no corpo.

Na minha recente obra, Diva, escultura/intervenção localizada na Usina de Arte que causou polêmica no início de 2021, evidencia muito bem essa dimensão do feminino traumático em minha obra.

Em Dra. Diva (2006), Juliana rasga uma fenda como uma vagina na parede branca, criando uma interferência com textura de sangue. Foto: Acervo pessoal
Em Dra. Diva (2006), Juliana rasga uma fenda como uma vagina na parede branca, criando uma interferência com textura de sangueFoto: Acervo pessoal

MT – Você recodifica a experiência da violência quando a transmuta em obra, e então o público convive de outra forma com o trauma. É extraordinária essa leitura e quero partir dela. A arte, que neste momento (na interlocução com a castração do búfalo) opera tornando o fato uma interrogação acerca do próprio fato, é a expressão de um profundo realocar da experiência da castração e, mais ainda, do olhar de quem vê e sente aquele distanciado cotidiano rural (agora reprogramado para uma experiência extraordinária de arte). Em resumo, tomando este exemplo para rastrear sua produção segundo esta chave, como você lida com a dimensão incontrolável do olhar? Somos todos polissêmicos e afetados por inúmeras variantes; assim, diante de uma obra com códigos tão minuciosamente orquestrados, como é, durante a performance “perder” ou abrir mão da posição de “orientadora” do olhar? Você programa quem será este outro ou outra a vê-la ou, assumindo o lugar da imagem, aceita, enquanto experiência bem-vinda, as infinitas – e potencialmente, até mesmo antagônicas – leituras porvir?

Juliana Notari – O caráter incontrolável do olhar potencializa a dimensão simbólica aberta da imagem. As infinitas possibilidades de significados que a imagem produz é o que mais me fascina enquanto artista visual. Adoro perceber as diferentes recepções, por mais antagônicas que sejam, que a minha obra produz. Por isso, dependendo das circunstâncias, prefiro nem falar sobre as motivações dos meus trabalhos, porque de alguma forma essas pistas podem interferir na fruição mais livre da obra.

Entendo que essa perda de controle é inerente à produção artística; desconfio do artista que diz estar completamente ciente da sua próxima obra. Há tantas variantes e acasos no processo de criação e produção de uma obra, que eu não saberia dizer precisamente como será minha próxima obra. O caráter imprevisível é uma condição do fazer artístico, há nele um jogo entre intuição e intelecto entre o inconsciente e o consciente. Afinal designamos que quem faz arte são os seres humanos e nós sabemos, como demonstrou Freud muito bem, que o nosso consciente é apenas aquela pequenina ponta do iceberg e que sua imensa parte submersa corresponde ao nosso inconsciente. Se mesmo nas ciências mais duras não podemos desprezar o caráter imprevisível e intuitivo, o que dirá nas artes?  O Duchamp naquele seu pequeno texto maravilhoso, “O ato criador”, ao falar sobre o mecanismo subjetivo que produz a arte, chama de “Coeficiente Artístico” justamente esse jogo entre as forças intuitivas e as forças conscientes entre o artista, a obra e o público. Então, a polissemia dos sentidos é uma construção conjunta.

Contudo, existem linguagens artísticas em que o caráter intuitivo e imprevisível é mais acentuado. Na atualidade, acredito que a performance é a linguagem que mais favorece esse caráter.

Apesar de trabalhar com várias linguagens (fotografia, vídeo, instalação, intervenção, objeto, desenho, entre outros), creio que na performance alcanço meu potencial máximo na arte. Considero que performance é a expressão que possibilita viver a experiência do risco, da “perda de si”, da liminaridade, da indeterminação, da despossessão do Eu, enfim… 

Através da experiência artística, busco me transformar por meio de minha poética e é na performance onde encontro esse lugar (ou melhor, esse não-lugar/liminar) no qual a produção estética se associa à produção subjetiva de forma mais efetiva. A própria etimologia das palavras “experiência” e “performance” ajuda a compreender melhor suas forças. Experiência deriva do indo-europeu “per” e tem precisamente o significado literal de “tentar, aventurar-se, correr riscos”. Experiência e perigo vêm da mesma raiz, que é a derivação grega “perao”: “passar por”.

Sendo assim, busco criar as circunstâncias para acolher o imprevisível.

No meu processo artístico, principalmente em performance, há uma orquestração minuciosa sim, mas é uma orquestração para que o acaso, o acontecimento imprevisível seja incorporado à obra.

A obra de Juliana passeia para além do corpo, passeia entre o tempo e as escolhas. Olhar o trabalho de qualquer artista do lado de fora pode nos colocar em posições desconfortáveis, o que parece ser o intuito de qualquer obra que fale sobre o agora – por mais que esteja localizado em algum lugar que alguns podem entender como passado. A divisão provocada por Symbebekos talvez seja a mais simbólica de todas, quando o que parecia estar suspenso rompe as fronteiras da violência, agregando beleza em tudo aquilo que dói. • Lia Petrelli @liapetrelli
A obra de Juliana passeia para além do corpo e passeia entre o tempo e as escolhas. Olhar o trabalho de qualquer artista do lado de fora pode nos colocar em posições desconfortáveis ( e este parece ser o intuito de qualquer obra que fale sobre o agora – por mais que esteja localizado em algum lugar que alguns podem entender como passado • Lia Petrelli @liapetrelli

MT – Sua distinção acerca da produção e do impacto me parece perfeita, irretocável. Neste caso, parece, não há surpresa quando suas obras ganham os noticiários (sob a doença reativa de um conservadorismo pronunciado, brutal e ressentido). Quero dizer… você elege forças e, de certo, imagina consequências. Naturalmente muita gente recebe, abraça e encontra um significado positivo na sua obra, mas muita gente também combate e grasna contra… Te impressiona que a sua produção tenha tanta conexão com as pautas que essas tendências elegem para agredir? É parte do seu programa acessar tais grupos?

Juliana Notari – No caso dos meus trabalhos, eles sempre transversam com questões subterrâneas, escatológicas, desejos. Questões sempre indesejadas ao ser humano perfeito propagandeado pela sociedade castradora e conservadora. O “homem de bem” e a “mulher de respeito” rechaçam tais discussões e manifestações. Me interessa esmiuçar, retirar as camadas daquilo que a sociedade recalca, tapona e prefere não lidar. Por isso o tema da morte e da sexualidade são frequentes na minha produção. Essas questões se tornaram tabus justamente porque são extremamente potentes e revolucionárias. Não interessa ao sistema capitalista neoliberal lidar com a morte. A consciência do limite e da finitude atrapalha a noção de progresso surgida na Modernidade, calcada, por sua vez, em certa noção de crescimento infinito da produção de bens e mercadorias para a satisfação e “evolução” da humanidade.  Essa consciência vai contra a noção de progresso predatório e ilimitado que o capitalismo necessita, pois o indivíduo que tem consciência do limite e da finitude não é um bom consumidor

O mesmo acontece com a sexualidade das mulheres. Há mais de 20 anos a imagem da ferida-vulva está presente em muitos dos meus trabalhos. A aproximação da vulva com a ferida remete a questão da violência imputada aos corpos das mulheres ao longo dos séculos pelo sistema patriarcal-colonial-capitalista. É preciso trazer à tona, e faço isso através da arte, os processos de silenciamento e inferiorização que o patriarcado impõe no sentido de reduzir tais corpos à mera força de trabalho, de reprodução e inferiorização. Lembrando que a depender da cor e da classe social esses processos aumentam absurdamente. As mulheres pobres, que não são brancas, têm seus corpos entre os mais violentados pela lógica colonial-patriarcal-capitalista.

Por isso creio que Diva teve a capacidade de mobilizar a ponto de mover grandes estruturas. O debate foi instigado e foi posto. Acredito que a dimensão sagrada da vulva, além da sexual, desperta um medo desse órgão tão potente. Talvez ela desperte um medo primitivo. Há milênios tem sido atacada, anulada e subjugada pelo patriarcado. Diva remete ao sangue. O sangue menstrual também é um elemento que a sociedade patriarcal e capitalista busca abolir, associando-o a sujeira e vergonha, bem como à função única de procriação da mulher. Há em Diva uma dimensão que abrange a vida e a morte, que potencializa a obra. Todos nós nascemos de uma vagina e todos nós retornaremos à terra quando morrermos.

No caso de Diva já esperava que houvesse retaliações, ainda mais num momento tão obscuro que estamos vivendo no Brasil.

Mas, o que me impressionou mesmo foi a rapidez da disseminação da repercussão a nível internacional por conta das mídias digitais. Isso gerou uma demanda violenta da mídia sobre o assunto, que por mais que seja interessante a nível de visibilidade para um artista, não deixa também de ser um tipo de ataque.   

O contato massificado com a obra “Diva” trouxe questionamentos valiosos para os tempos de hoje: a proposta de fazer com que a arte chegue na grande mídia abre alas para questionamentos que tangem a fabricação do diálogo como interesse artístico quando apontamos artistas que articulam obras anteriores pouco reconhecidas. “Diva” foi pura estética? É a reflexão que conta? Na época do degringolar me vi implicada em debruçar sobre as incontáveis críticas agressivas que apareciam de minuto a minuto. A maioria voltada para os próprios egos, diálogos que por si mesmos dizem sobre a era do Eu. • Lia Petrelli
O contato massificado com a obra “Diva” trouxe questionamentos valiosos para os tempos de hoje: a proposta de fazer com que a arte chegue na grande mídia abre alas para questionamentos que tangem a fabricação do diálogo como interesse artístico quando apontamos artistas que articulam obras anteriores pouco reconhecidas. “Diva” foi pura estética? É a reflexão que conta? Na época do degringolar me vi implicada em debruçar sobre as incontáveis críticas agressivas que apareciam de minuto a minuto. A maioria voltada para os próprios egos, diálogos que por si mesmos dizem sobre a era do Eu. • Lia Petrelli

MT – Seria uma pergunta vazia se antes não tivéssemos acompanhado a forma como você desenvolve em linguagem objetiva as balizas do seu trabalho, e a forma como você expande sua produção aos demais setores do pensamento (estético e não). Assim, tendo enquanto contexto a sua fricção com os tantos termos da experiência, o que a sua arte procura enquanto projeto?

Juliana Notari – Olhando em retrospecto meus vinte e poucos anos de trajetória artística, é possível constatar que a ênfase na experiência artística, mais que na obra acabada, é o que move a minha pesquisa. Sendo o corpo meu principal território de expressão, muitas vezes ele surge acompanhando questões relativas a determinados temas como: nascimento e morte; sexualidade; feminino; feminismos; relação entre ficção e confissão; trauma; acaso; relações de cumplicidade/testemunho; encontros entre animalidade e a humanidade; linguagem e perversão. Contudo, esses temas na minha obra estão sempre atravessados pela questão da sexualidade e da morte. Na visão de Bataille, a morte e a sexualidade são indissociáveis, são a mesma coisa porque ambas implicam na perda dos limites. Bataille diz que no erotismo há a perda do “eu” porque ocorre a supressão dos limites, que é o sentido final do erotismo e também da morte. Ele vai falar que “do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte.”

É justamente por essas questões que a performance é o lugar onde me sinto mais confortável e onde acredito alcançar a maior potência nas minhas experiências/obras artísticas como disse anteriormente.

Percebo que no meu programa artístico há o desejo de potencializar o corpo e a experiência. O corpo está presente não apenas nas performances, mas também em objetos, em desenhos, em intervenções ou misturado com seres vivos não humanos, como na proposta com jabutis na videoinstalação Verstehen (2002), com o búfalo na performance Mimoso (2014) ou com a árvore samaúma na performance Amuamas (2018). Mas é importante dizer que quando me refiro ao corpo também me refiro ao pensamento, afinal não existe pensamento potente sem um corpo potente e vice-versa.  Infelizmente, nas tradições dominantes do pensamento ocidental, o corpo ocupa um lugar de insignificância e sempre em relação de subordinação ao “espírito”. Assim, a arte como também outros lugares, são espaços privilegiados para se investigar o potencial do corpo na produção de subjetividade como processo.

Há cinco milênios o patriarcado vigora e há cinco séculos, desde que o sistema patriarcal encontrou o sistema colonial capitalista, que este sistema elege determinados corpos e territórios contra os quais se faz a guerra. Os corpos negros foram barbarizados durante a escravatura, os indígenas sofreram extermínio durante o período da colonização das Américas e as mulheres foram perseguidas e mortas durante o período da caça às bruxas. De diferentes modos, esses corpos continuam sendo reprimidos, mutilados ou mortos. A violência encontra, porém, novas armas bastante criativas e sofisticadas. Os dispositivos de invenção e reinvenção dessas armas permanecem funcionando a pleno vapor, pois o sistema patriarcal-colonial-capitalista precisa impor seu jugo sobre esses corpos, fazê-los subalternos. Os corpos precisam ser constantemente vigiados e controlados, além de subalternizados, como bem demonstrou Foucault nos estudos em torno do conceito de biopolítica.

O que se pretende dominar e calar nesses corpos? Que poder é preciso oprimir ou silenciar? Sendo o corpo feminino o principal foco da minha pesquisa, através da minha produção artística busco refletir sobre os processos de silenciamento e inferiorização que o patriarcado impõe, tentando reduzir tais corpos à mera força de trabalho. Importante ressaltar que as violências e as desigualdades aumentam absurdamente quando se utilizam os critérios de raça e classe social. As mulheres pobres, que não são brancas, têm seus

MT – Qual modelo artístico te parece que não deveria pautar as obras neste começo de século?

Juliana Notari – Estamos imersos no auge de uma das fases mais nefastas do sistema neoliberal globalizado, então acredito que o maior desafio das obras dos fazedores de arte nesse começo de século seja justamente saber jogar com a força da domesticação do mercado sem deixar se desvitalizar.

Diante da excessiva precarização da vida provocada pelos mecanismos desse sistema cruel, isso não é nada fácil para a grande maioria dos artistas.

Agradecemos pela leitura de nossa conversa.

,Sobre a artista:

Artista e pesquisadora na área de artes é doutoranda e mestre em Artes Visuais pelo PPGARTES/UERJ, trabalha com as mais diversas linguagens (instalações, performances, vídeos, fotografias, desenhos e objetos) com abordagem multidisciplinar.

Notari participou de exposições nacionais e internacionais, recebeu prêmios, realizou residências artísticas e possui trabalhos em coleções públicas e privadas.

Dentre os prêmios podemos destacar: artista finalista do 7º Prêmio Marcantonio Vilaça, 2019, nomeada para o Prêmio PIPA 2018 e 2019; Prêmio do Salão Arte Pará em 2014; Prêmio Funarte – Mulheres nas Artes Visuais em 2013; Prêmio Bolsa de pesquisa no Salão de Arte Contemporânea de Pernambuco em 2004.

Suas principais exposições individuais incluem: ‘Amuamas’, 2018 e “SORTERRO Cap. 5”, 2014, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – MAMAM (Recife, PE, 2014); “Desterro: enquanto eles cresciam”, Museu da Cidade do Recife (PE, 2016); “Rire pour Moi, 2009, Galeria da École Supérieure d’Art d’Aix-en-Provence (França, 2009); “REDENTORNO, Galeria Vicente do Rêgo Monteiro, Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj (Recife, PE, 2008); “Diário de Bandeja” Galeria Amparo 60 (Recife, PE, 2008); “Symbebekos”, Galeria Fayga Ostrower, Funarte (Brasília, DF, 2004).

Das exposições coletivas destacam-se: ‘À Nordeste’, SESC 24 de Maio (São Paulo, SP, 2010); ‘Exposição do 7º Prêmio Marcantonio Vilaça’, MAB-FAAP (São Paulo, SP, 2010); 37º Salão Arte Pará [Artista Convidada] – Museu UFPA (Belém, PA, 2018): “Bienal Del Sur: Pueblos en Resistencia”, Museu de Belas Artes de Caracas (Venezuela, 2015); “Transperformance 2 – Inventário dos Gestos”, Oi Futuro Flamengo (Rio de Janeiro, RJ, 2012); “Metrô de superfície”, Paço das Artes (São Paulo, SP, 2012); “Festival Performance Arte Brasil”, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM (Rio de Janeiro, RJ, 2011); “Tripé/Escrita”, SESC Pompéia (São Paulo, SP, 2010); “Rumos Itaú Cultural de Artes Visuais (São Paulo, SP, Rio de Janeiro, RJ e Salvador, BA, 2009); “Territoires Transitoires”, Palais de la Porte Dorée (Paris, 2005); “O Corpo na Arte Contemporânea Brasileira”, Itaú Cultural (São Paulo, SP, 2005).

Possui trabalhos em acervos particulares e institucionais, a exemplo do Museu de Arte do Rio – MAR (Rio de Janeiro), Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – MAMAM (Recife,PE), Coleção do Banco do Nordeste – CCBNB (Fortaleza, CE), Fundação Rômulo Maiorana (Belém, PA), Museu da Universidade Federal do Pará (Belém, PA), Fundação Cultural GUEES (Los Angeles, EUA), Casa Niemeyer e Casa de Cultura da América Latina – CAL, Universidade de Brasília (Brasília – DF).

Instagram: @juliana_notari

,Sobre os autores:

Marcio Tito é dramaturgo e diretor teatral, além de editor e entrevistador no site Deus Ateu (www.deusateu.com.br). 

Instagram: @marciotitop

Lia Petrelli é Artista Visual e Psicanalista. Entre educação, poesia e composições artísticas intermídias, percorre leituras e escritas como meio de exteriorização psíquica e emocional.

Instagram: @liapetrelli

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