Pano de Boca – Por Marcio Tito

Com destaque para as boas escolhas e para a refinada técnica de Dhiovana Souza, bom elenco, cenário incentivo e narrativo, e um extraordinário e necessário resgate do material original, Pano de Boca é uma das mais importantes montagens deste primeiro semestre

Por Marcio Tito • @marciotitop

Coisa rara é ver um artista ou um coletivo de artistas prestar serviço àquilo que escapa aos desejos mais imediatos. Nós, os vivos, com vício de sermos jornais barulhentos e ruidosos acerca das nossas pautas ou sensibilidades, temos vivido para escrever nas paredes dos teatros tudo o que nos ocorre, tudo o que vivemos ou todas as coisas que nos afligem. Legendamos cada vão momento e sentimos existir apatia ou crime quando descemos do palco e a plateia, assim como veio, vai-se. Perdendo-se livre de qualquer opinião ou informação a nosso respeito, sem de maneira alguma saber um pouco mais ou um pouco menos de nós, a plateia faz seu regresso e, pela força dos dias, muitos e muitas artistas sentem não ter lançado ao imaginário coletivo mensagem nenhuma, mesmo tendo compartilhado com seu público as falas e dramas, atos e viradas de um Shakespeare, Gianfrancesco Guarnieri ou Daniela Pereira de Carvalho. Sendo assim, tomar a pena do tempo e oferecer um serviço com ares de sacerdócio àquele traço antigo, como se vê, acabou se tornando quase um gesto heróico, disruptivo. Buscar na memória das bibliotecas textos amarelados ou despojados de suas capas, e assim, na sala de ensaios, investigar as pausas, os sonhos e as angústias dos homens e das mulheres do passado. Pano de Boca, com apaixonada e apaixonante direção de Marcelo Marcus Fonseca, é aquele tipo de material que, mesmo quando levado por um bom elenco (como se mostra suficiente a equipe do Teatro do Incêndio), ainda assim, conforme as cenas avançam e os atos se passam, parece esfarelar as fisionomias e os semblantes dos e das artistas presentes, porque é um texto maior. Tanto por isso, mas também pelo caráter metateatral do enredo, optei por iniciar este excerto com a ideia do serviço no quando agora das obras teatrais. Sistemas cênicos são quase sempre simples. De modo geral, versarão com maior ou menor obsessão acerca de um projeto de ilusão ou de (ou performance de) presença da realidade. E esta é a grade força e o extraordinário pulso da supracitada encenação – textos decorados, marcas definidas, figurinos narrativos e a máquina simplesmente movimenta-se inspirada pelo pulso elétrico do texto original. Sem precisarmos milaborar ajustes, auxílios, saídas ou cenas de apoio. Simplesmente uma obra teatral sem constrangimento em ser Teatro. No início da década de 20 deste século corrente, não era raro que alguém me visse por aí e dissesse ter gostado de determinada obra teatral porque a mesma era “muito cinema”, “muito HQ”, “muito dança” ou muito “performance”, e eu sempre ficava pensando quando é que gostaríamos de um teatro que fosse “muito teatro”. Não sei se atualmente as pessoas têm podido gostar de teatros que sejam muito teatro, contudo, tenho percebido espocarem obras determinadas a sê-lo. O teatro e as suas lutas, mas também o teatro e sua glória. O teatro e suas contradições, mas também as artes cênicas e a sua posição em um mundo diariamente mais sombrio. Incêndio contra tudo isso. Teatro. Em sua fórmula exata. Fazendo dos elencos parabólicas entre tempos. Sem nunca constranger-se pela fisionomia deste ato ritual milenar. Varrendo a calçada.

Ficha Técnica:

Texto: Fauzi Arap.
Direção: Marcelo Marcus Fonseca.
Elenco: Cristiano Sales (Segundo), Daniel Ortega (Paulo), Dhiovana Souza (Magra), Francisco Silva (Pagão), Josemir Kowalick (Marcos), Lui Seixas / Vithor Zanatta (Zeca), Marcelo Marcus Fonseca (Produtor), Pedro Lourenço (Pedro) e Viviane Figueiredo (Ana).
Música ao vivo: Xantilee Jesus.
Criação de luz: Rodrigo Alves “Salsicha”.
Recriação de luz e direção de montagem: Beto Martins.
Designer gráfico: Gus Oliveira.
Cenário: Marcelo Marcus Fonseca (a partir de conceito e desenhos de Flávio Império para a Montagem original).
Figurino: Criação do grupo (a partir de ideias de Flávio Império para a montagem original).
Assistência de figurino e de cenografia e operação de luz: Sara Zizuino.
Fotos: Camila Rios e Marcos Alonso.
Assessoria de imprensa: Eliane Verbena.
Produção e idealização: Teatro do Incêndio.
Realização: Temporada realizada com apoio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo.

Deixe um comentário