Terrapreta – Por Marcio Tito

Como resultado do sacerdócio trazido pela profunda tomada de consciência alavancada por uma realidade incendiada, toda a equipe não-indígena do espetáculo serve aos interesses de um povo aparentemente jamais adoecido pela ideia de uma cena puramente esteta e vaidosa. Com ótima produção, cenário preciso e momentos de grande catarse, Terrapreta é um dos mais impressionantes e positivamente forasteiros materiais da temporada – Terrapreta

Por Marcio Tito • @marciotitop

Os laços de admiração, respeito, trabalho e amizade que me unem ao cerne desta produção, sobretudo no contexto dos gestos, da presença e da força da atriz e idealizadora Helena Cerello em todos os momentos do trabalho, me colocam em um terreno pouquíssimas vezes frequentado e quase sempre temido por aqueles e aquelas que vivem dos efeitos mercadológicos oriundos do ativo simbólico produzido pela opinião crítica quando colocada de maneira pública e a respeito de algum trabalho cuja ficha técnica apresenta os nomes de amigos ou amigas queridas.

Da aguerrida pré-produção ao visível e invisível ato realizado com a potência da sábia e plena direção de Nelson Baskerville, existe um tempo-espaço de coisas e forças verdadeiramente originais em suas mais dinâmicas definições acerca do que seria o teatro, do que seria uma obra de arte e quais os papéis dos e das artistas em um ambiente de guerra ou disputa pela vida e pela saúde cultural de povos complexos e compulsoriamente lançados às cadeiras elétricas do capitalismo.

Se Rita Carelli, com o texto original, nos envolve em uma produção narrativa absolutamente certeira e profissional na construção da clássica estrutura de um romance capaz de resistir aos mais diversos tipos de análise, a dupla Cerello & Baskerville opta por um código de cena que “ganha em se perder”. Livre do “certo” ou do “errado” arraigado ao valor de tudo aquilo que é produto e se pode dar preço – e talvez apresentando de maneira já muito bem nascida a “pré-história” das obras produzidas por verdadeiros aliados e aliadas -, Terrapreta realiza de maneira intraduzível parte do último mistério sondado pela mente do gênio José Celso, em uma noite fatídica, quando se acidentou após o expediente de trabalho a respeito de A Queda do Céu, de Bruce Albert e Davi Kopenawa.

Projetando e definindo as balizas de um teatro capaz de fazer caber culturas cujas representações cênicas ou artísticas desencontram-se por completo dos ditames aceitos pelo cânone do “povo da mercadoria”, a dupla parece alcançar os objetivos do xamã do Teatro Oficina. Viu-se o mestre dizer que brancos fariam somente garimpeiros e que os povos indígenas presentes no enredo seriam sempre encarnados por pessoas indígenas. Viu-se o mestre dizer que a ideia de teatro estava por um fio, que os atos e os ritos é que precisavam agora encher e mover o “teatro estádio” – e em Terrapreta, o que se vê senão, para além da presença destes corpos? Justamente o teatro por um fio. Justamente plateia e elenco em estado de graça e conjuntura. A presença de algo fundamentalmente afirmativo e que é (sem a necessidade de ser). Livre de ilusões insalubres ou esquemas de montagem: um ritual organizado, cênico, marcado feito cena, urgente e nunca “coisificado” – como não se pode nunca “coisificar” a própria vida.

Como seria abrir um terreiro de vozes e tempos, de mundos, corpos e políticas, vidas, estruturas psíquicas, fatos e filosofias? Terrapreta.

Como as contradições do formato épico ou dramático acomodariam as determinações de um simbolismo humano que, à prova de fórmulas previamente conhecidas por nós, ainda assim, mostra-se tão eloquente quanto qualquer língua disparada pela boca do homem branco? Terrapreta.

Sendo assim, estou seguro de que todas estas interrogações ficam pálidas e mudas quando produzidas por nossa quase sempre pouco polissêmica capacidade de compreensão – então – ao que se percebe, estaria eu dizendo que os e as artistas encontraram o limite?, a barreira intransponível? Artistas, portanto, não seriam capazes de darem a ver de modo legítimo a sintaxe existencial daqueles que vivem por meio de outras configurações sensíveis? Sim. É possível que eu tenha dito qualquer coisa que possa significar o supracitado raciocínio, contudo, caso tenha assim dito, carreguei comigo o desejo e a necessidade de dizer que os e as artistas são sempre parte do limite das obras, mas nunca a própria arte o será:

Esta, filha do Belo e do Jogo, filha do Extraordinário e do Improvável, sabe-se espinha e sopro para a intuição da intuição. Prisma diante do prisma. Fractal do fractal.

Terrapreta, em 2024, confessa um mundo interior e renova o ponto de partida e o ponto de chegada de Helena e Nelson, mas também de Nelson e de Helena separadamente. Porque raramente se viu teatro cujo alfabeto simbólico e formal nos dissesse de maneira tão inspirada o sucesso da grande coisa nenhuma da vida humana. Em uma de suas mais telúricas direções, talvez sem fazer teatro, mas recompondo com bem-vindo esteio pueril as zonas ainda escuras das artes do palco, Baskerville se liberta da profunda marca que seu nome carrega e simplesmente refunda a ideia de “palco”. E se me dedico a pensar as faces ocidentais e brancas de uma obra tão múltipla, pois bem. Me armo da única régua que disponho e calo diante daquilo que desconheço e que também não me sabe. E será preciso que Helena ocupe com naturalidade o seu lugar de destaque na história do teatro recente.

Para além do teatro: Homoludens

Ficha Técnica:
TERRAPRETA A PEÇA (SONHO)
Inspirado no livro TERRAPRETA da autora RITA CARELLI
Idealização: HELENA CERELLO
Direção artística: NELSON BASKERVILLE
Participação especial no Audiovisual: ALDEIA KAMAYURA
Adaptação dramatúrgica NELSON BASKERVILLE, HELENA CERELLO
Colaboração: MAPULU KAMAYURA
Elenco: MAPULU PAJÉ KAMAYURA RAÚL YAWALAPITI, MAIRA YAWALAPITI HELENA CERELLO, LUCIANNA LIMA EUGÊNIO LA SALVIA, KURATU WAURA YAWALAPITI YUTAH YAWALAPITI
Coordenação de produção: HELENA CERELLO
Produtores associados: LUCIANNA LIMA RAUL BARRETTO
Música original: MARCELO PELLEGRINI
Iluminação: WAGNER FREIRE
Captação de imagens audiovisuais: GUILHERME GNIPPER LUCIANNA LIMA, HELENA CERELLO
Áudio captados no Xingu: ALEXANDRE GNIPPER
Agradecimentos ao cineasta indígena por imagens cedidas: TAKUMÃ KUIKURO
Direção de imagem e videomapping: ANDRÉ GRYNWASK e PRI ARGOUD (Um Cafofo)
Cenário: MARISA BENTIVEGNA
Figurinos: MARICHILENE ARTISEVSKIS
Supervisão de número circense: KIKO CALDAS
Preparação corporal: MAURICIO FLOREZ
Assessoria de imprensa: ARTEPLURAL
Assistente de produção: SUZANA AYALA
Atriz cuidadora das crianças indígenas: TAYA VALENTIN
Elenco primeira etapa de ensaios: SANDRA MIYAZAWA ADILSON AZEVEDO
Oficinas vivência indígena: DAYANE NUNES ETNIA DYROA BAYA ANDERSON KARY BAYA
Dramaturgismo: MARCELO ARIEL MÁRCIO TITO
Artistas plásticos: RUI KAMAYURA, FERNANDA ROMÃO
Fotógrafo: RONALDO GUTIERREZ

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