116 gramas: peça para emagrecer – Por Denizart Fazio

“O solo de Letícia Rodrigues é um bonito modo de nos dar a ver alguém que entra em um ringue do experimento e, junto conosco, o transforma em uma experiência de travessia que pode ser narrada” – 116 gramas: peça para emagrecer

 

Por Denizart Fazio • @denizartfazio

Antes de adentrar à sala de espetáculo somos convidados a nos pesarmos. A balança, que se faz de porta metafórica, acaba por nos informar que estamos adentrando em um lugar no qual as questões orbitarão sobre uma métrica que condiciona nossa experiência no mundo: o peso de nossos corpos. “116 gramas: peça para emagrecer”, espetáculo de Letícia Rodrigues, com codireção de João Pedro Ribeiro, enuncia uma contradição que está encarnada no corpo gordo: a aceitação de si num mundo violento com tais corpos e a aceitação do ódio imposto pelo outro diante dos corpos gordos. 

A peça não se propõe resolver essa polaridade, mas sim coreografar as questões que surgem desse encontro violento, vivenciado por todas as pessoas gordas. Então se desenha um percurso, uma caminhada na corda bamba entre essas duas aceitações inaceitáveis, buscando formas de existência menos dolorosas. O que seriam as danças, as coreografias, o balé num turbulento lago de cisnes, o corpo despido e as mãos vestidas para uma luta em punhos cerrados, senão essas diferentes formas de percorrer as polaridades em busca de alguma outra coisa, alguma outra posição no mundo. Letícia Rodrigues revisita e nos narra cenas de sua vida, em um esforço genealógico que não intenciona achar por fim a razão primeira das contradições enunciadas. O que ela faz é uma exposição. Um colocar-se para fora, desnuda, para dar a ver a si e aos outros os múltiplos fios nos quais são tecidos os lugares sociais em que se encontram as pessoas gordas.

A atriz domina o gesto performativo. Vemos isso na sua intensa presença no espaço, em cada enunciação que expõe o cálculo de esquadrinhamento da pessoa gorda, da maquinaria de emagrecimento de antes e de agora que tenta delimitar até onde vai um corpo. 

O texto de divulgação da peça diz que se trata de um “experimento performativo”. E toda essa métrica, inclusive no nome do espetáculo, aponta para isso. Mas o que encontramos, ao final, é uma “experiência performativa”. Walter Benjamin escreveu sobre esse confronto entre experimento e experiência naquele famoso ensaio sobre o narrador. Enquanto a lógica do experimento é da ordem da repetição (a cada apresentação emagrecer 116 gramas), a experiência se articula com a travessia de uma pessoa singular no mundo e que podemos ouvir a partir de sua narração. O solo de Letícia Rodrigues é um bonito modo de nos dar a ver alguém que entra em um ringue do experimento e, junto conosco, o transforma em uma experiência de travessia que pode ser narrada.

Penso que a contribuição teatral, nessas questões todas que nos atravessam, está justamente em sustentar, através do espetáculo, um tempo tão denso que seja capaz de nos fazer mergulhar na própria pergunta e dela sair ligeiramente diferentes. Sustentar a densidade de uma boa pergunta sem supor ter em mãos a resposta correta. Essa é a beleza do teatro. Se o programa performativo indica a proposta de emagrecer, o peso tão concreto e identificável na porta de entrada do espetáculo agora ganha outro tipo de materialidade. Uma materialidade que é corpo, mas também é outra coisa. Alguma outra coisa que só o teatro materializa em um tipo de sensibilidade que escapa de todas as métricas e se constitui justamente no espaço entre aqueles que compartilham uma história sendo narrada.

Denizart Fazio é dramaturgo, diretor e educador. Foi professor de dramaturgia na SP Escola de Teatro e na Pós-graduação em Dramaturgia do SESI-SP. Escreveu Curtume, com encenação e atuação de Ester Laccava. Escreveu e dirigiu  Santos Sujos, Grão-mundo, Plantio das Palavras e Wolfgang. É doutorando em educação na USP e na Université Paris 8.

Ficha técnica

Comunicação visual e fotografia: Maria Luiza Graner

Produção: Jéssyca Rianho

Operação de Luz: Felipe Stucchi

Composição, arranjo de trilha sonora, gravação, mixagem | Técnica e operação de som | Direção, mapping, edição audiovisual e operação de vídeo: Lana Scott

Desenho de Luz: Camille Laurent

Direção de movimento e coreografia: LuaaGabanini

Direção musical, composição e arranjo de trilha sonora: Natália Nery

Direção de arte: Eliseu Weide

Coordenação de Produção: Leonardo Birche

Direção: João Pedro Ribeiro

Concepção, dramaturgia, direção e atuação: Letícia Rodrigues

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