
– De Perto Ninguém É Normal
Por Marcio Tito
@marciotitop
Gustavo Paso vive uma das mais corajosas revisões da própria obra.
Race (presencial e digital), Oleanna e Hollywood, com significativas diferenciações, apresentavam um escopo de obras fortes e bastante racionais e apolíneas, conectadas ao melhor de uma encenação importada com valores tribunos e retóricos. Contudo, De Perto Ninguém É Normal, visitando o tempo-espaço das comédias populares, embora apresente similar decisão estética e a mesma clareza técnica de outrora, visita algumas muito bem postas e bastante insuspeitadas camadas de re-significação – vai ao fundo de uma cena que se sabe cena. Vai aos últimos estágios de uma poderosa simbíose entre os e as intérpretes e o núcleo de uma encenação muito mais filha de uma didática da obsessão do que irmanada aos processos criativos que encontram seus caminhos durante a jornada:
De Perto Ninguém É Normal nasce com vocação ao pastiche, contudo, ao encontrar a elegância técnica de boa parte do elenco, sobretudo nas figuras de Clara Carvalho, Marcelo Várzea e Fausto Franco, que surge é uma proposta de jogo integral – e parece brilhante vermos como a afinação entre a linguagem dos e das intérpretes, no caso do teatro, se mostra capaz de encontrar a última filigrana simbólica e comunicacional sugerida pela direção – corpos, vozes, ritmos e tons são a última linha do texto – sendo assim, neste ponto, encontra-se uma ótima qualidade do material dramatúrgico: a sua percepção não totalitária e claramente preocupada em manter-se porosa ao futuro encontro com as vozes dos e das artistas que complementam a cena.
Parece muito peculiar o que sugere Paso nesta montagem. Singular e autoral, cumprindo a sua epigenia no teatro, o diretor cria uma comédia de tipos e é assim que o trabalho soa de modo geral, contudo, pela inserção de valores estrangeiros ao cânone do formato, De Perto Ninguém É Normal, num comparativo às montagens da mesma linhagem, passa a disparar códigos muitíssimo poderosos e, certamente, capazes de uma profunda e sofisticada visita ao subjetivo de cada espectador ou espectadora, sendo assim, quase sem podermos notar sob quais movimentos, De Perto Ninguém É Normal aparece também como uma espécie de revisão ao teatro popular – e nem por isso nos rouba o sabor ou a catarse do formato.
O magnetismo visual e a forma como as personagens cabem nas marcas, e os melhores momentos da dramaturgia, colorem com potente assinatura uma obra que, certamente, pelas mãos de outro criador, como tanto se vê, poderia soar como genérica ou excessivamente prática e buscadora de artifícios reconhecidos – sendo assim – vale destacarmos também uma qualidade presente tanto na encenação quanto nas melhores interpretações – um certo desejo de fazer o caminho mais longo, como se cada artista quisesse sim realizar o efeito imaginado e esperado, mas sempre tomando uma via inusitada e, ato contínuo, refinada e mágica.
O texto, cujos melhores expedientes se dão entre o vaudeville de uma peça que não começa e a ótima metalinguagem capaz de envolver tal condição, é bastante bem arquitetado, contudo, talvez pelas interpretações irregulares neste final de cena, sobretudo na segunda metade do segundo ato, alguns “caroços” chegam a surgir – mas isso não afeta o efeito geral da montagem – muito embora sirva para colocar em claros quadros panorâmicos o que é que está posto nos papéis de maior destaque e, a contrapelo, o que é que não surgiu bem realizado nas participações menos presentes.
Paso, pela coragem e pelo produto, se confirma como voz necessariamente presente e profundamente capaz de uma produção múltipla e sempre posta nas mais altas prateleiras. É sublime que um diretor possa criar com a mesma potência uma sequência de obras tão diversas – e igualmente sublime a forma como os seus variados elencos atingem sempre a marca de um teatro incapaz de soluções ordinárias.
De Perto Ninguém É Normal Vai contra as “regras” tacitas de um mercado que nos exige repetição. Dribla com poderosa decisão a espada que tem nos tornado reféns de temporadas cujos destaques estão sempre dados nas direções que reapresentam direções passadas. Decisão, coragem, técnica e desejo de dialogar com um público que merece materiais diversos e estéticas inusitadas definem o material.
Com fôlego para diversos aniversários, infelizmente, como tem sido regra, o espetáculo não cumprirá longuíssima temporada, portanto, com prejuízos ao teatro, os e as intérpretes não terão o tempo necessário para encontrar cada gag, cada atmosfera e cada dispositivo de humor – e eis aqui uma obra capaz de confrontar, sobretudo esteticamente, a tragédia cultural que temos vivido sob o expediente destas diminutas e mercadologicamente burras curtíssimas temporadas.
Uma encenação como De Perto Ninguém É Normal, cuja expressão exigiria anos em cartaz, traz ao centro do debate uma obra cujo prospecto do diretor e dos e das artistas apresenta uma produção madura.
Após uma pandemia e após um presidente hediondo e doloso, felizes, encontramos, ainda que por tão pouco tempo, uma comédia que se faz daquilo que sempre nos interessará – artistas comprando ideias inusitadas e emprestando os seus equipamentos ao projeto de realização daquilo que encontra sucesso, mas não não sem antes apavorar a todos.
De Perto Ninguém É Normal é uma daquelas deliciosas obras cuja desconfiguração inicial causa sobressalto e, ato contínuo, exige muito mais foco e atenção.
FICHA TÉCNICA
DRAMATURGIA – Gustavo Paso, livremente inspirado na peça “Arsenic and old the lace” de Joseph Kesselring. Direção Gustavo Paso. Trilha Gustavo Paso, Rafael Thomazini e André Poyart. Iluminação Nicolas Caratori. Figurinos Graziela Bastos. Diretor de Arte e Cenário Gustavo Paso Produção Executiva Marcela Horta. Direção de Produção Selene Marinho. Coordenação Projeto Luciana Fávero. Realização CiaTeatro Epigenia. Com: Milhem Cortaz, Luciana Fávero, Clara Carvalho, Marcelo Várzea, Gláucio Gomes, Rodrigo Pavon ; Clóvis Gonçalves, Bruno Ribeiro, Vinicius Cattani, Fausto Franco, Regina Maria Remencius. Assessoria de Imprensa Alessandra Costa.