
Minha ferida existia antes de mim; Eu nasci para encarná-la. (Joe Bousquet)
Introdução
Ondas do Destino, de Lars Von Trier, tem uma cena ótima – ou talvez eu pense que tenha – e a cena ótima esteja em Decálogo, do Kieślowski, mas a tal cena nos diz o seguinte: um bar, repleto de homens velhos, rústicos e nórdicos, passa a ser “poluído” com a presença de jovens cuja aparência nos entrega o subproduto das contraculturas oriundas do final dos anos 60.
Cabelos arrepiados, casacos e calças surradas e todos parecem um compilado de programas de alguma televisão tão rasa quanto histriônica. O bando de jovens ostenta um certo belicismo e, diante dos homens velhos que bebem em amargurado silêncio, o time de vagabundos passa a se comportar bastante mal.
Conversas escatológicas, atos escatológicos e volume alto formam o principal eixo do cortejo de grosserias e má educação que a turma performa.
Dado momento, claramente inspirado a terminar com a ousada liberdade do grupo (que representa a modernidade), um velho (que representa a tradição), vestindo roupa de lã, ao terminar seu uísque ou conhaque, arrebenta com as mãos o copo de vidro e, como se nada!, vai tirando, dos dedos lacerados, os cacos de vidro. O sangue se espalha, corações aceleram, mas o velho apenas ferra mais e mais com o ferimento autoimposto.
O grupo de jovens sai do ambiente. O grupo escorre para fora (como se tomado por uma extraordinária tomada de consciência).
Esta cena está ali para nos dizer o seguinte: você pode fazer uma revolução, mas não se esqueça que ainda existe muita gente capaz de sentir e lidar com a verdadeira dor – guerras, fome, abusos, abortos, miséria, suicídio e morte não são ideias do passado e podem aparecer em qualquer esuqina (você tendo um Ipod ou não).
Gerald Thomas, em variadas mensagens visuais, alegóricas e filosóficas nos informa do mesmo: “vocês, é claro, podem realizar seus maravilhosos teatros por aí, mas não se esqueçam de que sempre existirá, de modo indestrutível e incurável, um verdadeiro teatro da crueldade. Ou dos sobreviventes. Ou dos quase mortos. Ou dos quase vivos”.
Há um lugar profundo, um lugar de presenças e ausências tão antropomórficas quanto cênico, e este é o lugar onde Gerald Thomas inscreve a sua grande opinião sobre o mundo e a fisionomia do ocidente. Deveres, desencontros, grandes utopias e vaidades estão na trama. Gerald, aterrado num ponto alto de esteta e artista, conflagrado, sorri um sorriso intelectual contra um horizonte autodestrutivo (e surge Duchamp na equação).
Duchamp + Nelson Rodrigues = Beckett
Ou
Nelson Rodrigues + Duchamp = Gerald Thomas
A ordem dos fatores altera o produto…
Multicultualismo e “Nelson Rodriguez” –
Sem miscigenação, sem pretos e sem samba, sem cores primárias intercaladas em adereços, como vivificar a experiência estética e simbólica do Brasil? Talvez, dentro da nossa ainda recente condição pós-moderna, trazendo para o game a voz ibérica de um gênio dessa gente: Nelson Rodrigues.
Nelson Rodrigues, um dos mais destacados sintomas que a civilização brasileira produziu, como um Machado de Assis, definiu partículas do que sempre será o espírito tropical e bucólico dos e das brasileiras. Atravessado por influências europeias, porém incapaz de não escrever sua grande obra em língua obsessivamente brasileira, Nelson Rodrigues é daqueles gênios ainda não inteiramente resolvidos na cultura. Dorotéia, uma de suas obras mais deformadas, em intuitiva, lisérgica, paródica e xamanista direção de Gerald Thomas, encontra um ponto de apoio rarefeito, porém absolutamente concreto e adequado.
Idiota foi quem não soube ver, como eu mesmo não vi, Duchamp em Nelson. Agora que dito, como sempre ocorre com as grandes ideias, passa a ser impossível descolar uma camada da outra. Duchamp e seu programa de leitura que, em grosseiro resumo, se dá pela leitura total e material dos objetos de arte, para muito além da primeira dimensão, parece muito bem adequado ao aparato rodriguiano que, em simétrico equivalente, também sobrevive do expediente que transmuta silêncios em solilóquios e solilóquios em silêncios.
Thomas, num fôlego implacável e, ainda assim, autoironico, reforma com oportuna substância tudo o que ainda não está revelado no texto do autor carioca. Sua miríade de ilusões e lacerações procura não mais a engenharia da fábula, mas sim um definitivo e violento encontro com (e contra) todas as bibliotecas que procuraram os enigmas guardados desde Vestido de Noiva.
Aqui, outra vez Beckett, uma chave: se Godot é a peça cujos textos também não economizam em rasgar para diversas direções, como numa conversa entre obras, F.E.T.O – Estudo para Dorotéia Nua Descendo a Escada, em muitas equivalentes medidas, sobrevive do mesmo impulso: compila, condensa e dispara muitas oitavas acerca das muitas oitavas que constituem as histórias das artes e dos teatros…
Técnica, momento e expressão final –
Sou, por diversas razões, o filho de um teatro pobre. Tanto por isso, como todos os que trilham tal estrada, nunca me deixo tartamudear perante grandes encenações – procuro reinterpretar e supor o que é que se veria feito no palco se a criatividade central da obra precisasse, sabe Deus por qual razão, remontar aquele espetáculo com 10 ou 20% do material então disposto. Vale dizermos que para que a economia fosse justa, é claro, o elenco poderia manter-se como é.
Então a pergunta se levanta – como é que com os instrumentos dos e das intérpretes poder-se-ia fazer sentir o que se sente quando aquelas luzes extraordinárias guiam a nossa imaginação?
De forma alguma estou dizendo que o teatro não tenha legitimidade quando há investimento, mas também não penso que deixe de tê-la quando tudo o que se pode utilizar em uma encenação são atores, atrizes, um bom texto e alguma maquiagem…
No mais, porque diante do Belo a grande alternativa dos vivos é sempre a de calar e contemplar, F.E.T.O – Estudo para Dorotéia Nua Descendo a Escada é uma das grandes construções visuais deste começo de década e século. Uma poderosa inscrição do teatro brasileiro nas estranhas e ainda incompreensíveis grandes questões deste tempo. Grandíssimo elenco, com destaque apenas a unidade das interpretações, e uma luz inesquecível e marcante arrematam a experiência.
O Brasil é feliz quando encenações tão autorais quanto urgentes aparecem e nos dizem sobre qualquer músculo que ainda resiste e bate forte por aqui.
Gerald Thomas reafirma por mais 30 anos aquela mítica ao seu redor: Um determinado e ousado criativo (em sempre oportuna e elegante guerrilha contra e à favor do próprio gênio e do próprio ego).
Ficha técnica
Criação e Direção: Gerald Thomas
CoDireção, Coreografia e Performance Aérea: Lisa Giobbi
Elenco: Fabiana Gugli, Rodrigo Pandolfo, Lisa Giobbi, Beatrice Sayd, Ana Gabi e Raul Barretto.
Dramaturgismo: David George
Desenho de Luz: Wagner Pinto
Cenografia e Direção Técnica: Fernando Passetti
Adereços: Clau Carmo, Raíssa Milanelli
Figurinos: João Pimenta
Poeta: Luciene Carvalho
Sonoplastia e Trilha Sonora: Ale Martins
Músicas:
Portugal é um Nerologismo: Fatima Vale & Charles Sangnoir
SKÆLV B: Kasper Toeplitz & Jørgen Teller
A Guerra, A Guerra II, Marcha Fúnebre: Eduardo Agni
Lamento: Eduardo Agni (com participação especial de Mônica Salmaso – voz)
Direção de Produção: Dora Leão
Assistente de Direção: André Bortolanza
Assistente de Produção: Ingrid Lais Monreal
Assistentes de Iluminação: Gabriel Greghi, Gabriela Cezario
Assistente de Cenografia: Vinicius Cardoso
Assistente Técnico: Samuel Kobayashi
Contrarregras: Calú Batista, Raíssa Milanelli
Maquinistas: ClaudioBoi, Mazinho, Rafael Dias, Zé DaHora
Cenotécnicos: Carol Nogueira, Casa Malagueta, Neide Cecilia, Rafa Dias, Su Martins, Usina da Alegria Planetária, Zé DaHora
Auxiliar de Montagem: Eron Dias, Iuri Dias, Leandro Wildenes, Rodrigo do Nascimento, Willians dos Reis
Direção e técnica do vídeo (de Ana Gabi): Carol Thusek
Visagismo: Louise Helène
Aulas de Corpo: Fabricio Licursi
Camareiras: Andrea Lima (Temporada), Maria Rosa Nepomuceno (Ensaios)
Segurança: Juliana Ferreira
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Desenho e Pintura: Gerald Thomas
Fotos de Divulgação: Carol Thusek, Claudia Santos de Oliveira
Produção e Administração: PLATÔproduções
Realização: Sesc SP
[…] Publicado em 28 de agosto de 2022por Deusateu […]
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